“Infelizmente as doenças do foro psicológico são o chamado ‘caixote do lixo’ do SNS" - TVI

“Infelizmente as doenças do foro psicológico são o chamado ‘caixote do lixo’ do SNS"

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  • 16 dez 2019, 07:50

Resultados do estudo “Sem Mais Tempo a Perder: Saúde Mental em Portugal – Um Desafio para a Próxima Década" apresentados esta segunda-feira

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Henrique Barros, defende que é urgente combater o estigma e a discriminação que as pessoas com doença mental ainda sofrem e assegurar os seus direitos.

"Os problemas de saúde mental afetam várias áreas da vida pessoal, familiar e profissional das pessoas. Porém, viver com problemas de saúde mental em Portugal está ainda associado a um forte estigma e discriminação", refere um estudo do CNS, que será hoje divulgado, em Lisboa, no 3.º Fórum do CNS.

Estas pessoas continuam a defrontar-se com “barreiras ao seu pleno reconhecimento como cidadãos”, nota o estudo, propondo que o tratamento adequado, acompanhamento, reabilitação e o apoio social é fundamental para que possam ter uma participação plena na sociedade, no mercado de trabalho e família.

Além do estigma e da discriminação, os doentes mentais também têm dificuldades no acesso a estruturas de apoio social”, alerta o estudo, defendendo que a articulação entre o setor da saúde e o setor social precisa de ser reformulada e adequada ao grande número de doentes e famílias que carecem de apoio.

Para Henrique Barros, ainda existem “aspetos que são chocantes” e que precisam de ser resolvidos na interação entre os cuidados de saúde e os cuidados de natureza social e de reinserção na vida ativa.

O diálogo entre estes dois prestadores de cuidados, e a qualidade desse diálogo, é provavelmente a chave do sucesso para que a saúde mental encontre as respostas que são necessárias” para que “as pessoas que vivem com os problemas os consigam ultrapassar”, sublinhou.

No seu entender, chegou a hora do Serviço Nacional de Saúde concretizar as soluções preconizadas para combater os problemas nesta área.

O Serviço Nacional de Saúde tem 40 anos, que é muito pouco tempo na vida de uma instituição, fez o percurso de responder inicialmente a outro tipo de problemas e agora é o tempo de consolidar as preocupações que existem, as soluções que foram desenhadas e, sobretudo, enfrentar os novos problemas que a saúde mental traz, nomeadamente combater toda a estigmatização e a discriminação de que sofrem particularmente as pessoas que vivem com problemas de saúde mental”, defendeu.

Deve também “refazer o sistema de resposta” do ponto de vista preventivo e curativo, mas sobretudo deve “saltar do espaço fechado da saúde” e perceber que a promoção da saúde mental se faz trabalhando com as diferentes áreas da organização social e da governação, como a saúde, a educação, justiça ou o trabalho.

Os autores do estudo do CNS, órgão independente de consulta do Governo, salientam a importância de “reconhecer que a saúde mental e os seus problemas são determinados pelas condições sociais”, sendo mais prevalentes nas pessoas mais pobres e com menor nível de educação, o que implica a adoção de abordagens abrangentes e intersetoriais.

“É fundamental assegurar não apenas os direitos daqueles que vivem com doença mental, incluindo familiares e cuidadores, mas também promover a sua participação na definição das políticas que lhes são dirigidas”, defendem, alertando ainda para a necessidade de regulamentar o Estatuto do Cuidador Informal.

Fazendo uma análise do estudo “Sem Mais Tempo a Perder: Saúde Mental em Portugal – Um Desafio para a Próxima Década”, Henrique Barros disse que “o essencial deste relatório estará entre a frieza de alguns números e de alguma estatística e o calor e a emoção das palavras das pessoas que vivem os problemas e os que cuidam delas tentam resolver”.

O documento divulga vários testemunhos como o um familiar de um doente, de 66 anos, que afirma: “infelizmente as doenças do foro psicológico são o chamado ‘caixote do lixo’ do SNS. Espero que, futuramente, mude”.

Pouca oferta de cuidados continuados mantém doentes internados

A insuficiente resposta de cuidados continuados em saúde mental obriga um número elevado de doentes a permanecerem internados, segundo em estudo, que defende ser urgente alargar a oferta para dar resposta aos doentes e às famílias.

“Apesar do sucesso da reorganização da rede hospitalar em saúde mental, a insuficiente resposta de uma rede de cuidados continuados em saúde mental ainda mantém um número elevado de doentes de longa duração em internamento hospitalar”, afirma o estudo do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Para os autores do estudo, a oferta de cuidados continuados em saúde mental ainda é “muito insuficiente, face às necessidades existentes, e muito assimétrica, sendo urgente expandir o número de lugares de forma a dar resposta aos doentes e às suas famílias”.

A conclusão da reforma da rede hospitalar, com a transferência de respostas de internamento de agudos dos hospitais psiquiátricos para os hospitais gerais, também é defendida no estudo, que será divulgado hoje, em Lisboa, no 3.º Fórum do CNS, um órgão independente de consulta do Governo que visa garantir a participação dos cidadãos na definição das políticas de saúde.

Segundo o documento, a que agência Lusa teve acesso, falta concluir a integração da assistência psiquiátrica nos Serviços de Saúde Mental do Centro Hospitalar do Oeste, Hospital Professor Doutor Fernando da Fonseca, Centro Hospitalar do Médio Ave e Centro Hospitalar Entre o Douro e Vouga.

Quando isto acontecer “será o momento de reorganizar o espaço e os recursos dos três hospitais psiquiátricos de modo a, em articulação com o Ministério da Justiça, acelerar a reorganização das unidades de internamento de inimputáveis”.

O estudo assinala os “passos positivos” dados recentemente com a abertura de novas camas em Lisboa e Porto, mas diz ser urgente requalificar a unidade de Coimbra, e disponibilizar mais lugares para inimputáveis fora dos estabelecimentos prisionais”.

Por outro lado, a prevista criação este ano de equipas comunitárias de saúde de saúde mental em cada região de saúde “não se tornou uma realidade”.

A isto acresce a assimétrica distribuição dos profissionais de saúde mental, o que limita, por exemplo, a constituição de equipas de saúde, sublinha.

Em Portugal, as perturbações psiquiátricas têm uma prevalência de 22,9%, colocando o país num “preocupante segundo lugar” entre os países europeus. A depressão afeta 10% dos portugueses e, em 2017, o suicídio foi responsável por 14.628 anos potenciais de vida perdidos.

Adicionalmente, a demência assume uma frequência de 20,8 por cada 1000 habitantes, o que posiciona Portugal em 4.º lugar entre os países da OCDE.

Os psicofármacos representaram em meio hospitalar um consumo de 11,3 milhões de unidades CHNM [correspondem à quantidade unitária de cada medicamento: número de comprimidos, seringas, frascos] nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde em 2018, um aumento de 3,6% em relação a 2017.

Mais de 10 milhões de embalagens de ansiolíticos consumidas num ano

Os portugueses compraram no ano passado mais de 10 milhões de embalagens de ansiolíticos e quase nove milhões de embalagens de antidepressivos, com os fármacos para a ansiedade a apresentarem tendência estável enquanto os da depressão crescem.

Portugal surge como o quinto país em 29 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) que mais consome antidepressivos, tendo uma taxa de consumo que é o dobro de países como a Holanda, a Itália ou a Eslováquia.

O consumo de ansiolíticos apresenta uma tendência estável em Portugal desde 2014 e no ano passado foram compradas 10,5 milhões de embalagens.

Já os antidepressivos registam uma tendência crescente nos últimos anos e em 2018 foram compradas 8,8 milhões de embalagens.

O documento do Conselho Nacional de Saúde considera que são “particularmente preocupantes” em Portugal os dados do consumo de benzodiazepinas, medicamentos usados para a ansiedade que podem causar dependência com uso continuado.

“As benzodiazepinas e análogos são apenas indicados para o controlo de curto prazo da ansiedade e insónia, podendo ter efeitos deletérios [nocivos] se mantidos de forma crónica”, como possível adição e disfunção cognitiva, refere o relatório.

Dados de 2016 mostram que 1,9 milhões de utentes tiveram pelo menos uma prescrição de benzodiazepinas.

SNS só tem um psiquiatra da infância e adolescência em todo o Algarve

O Algarve tem apenas um psiquiatra da infância e adolescência no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e no Alentejo existem só dois, mostrando grandes disparidades no acesso a cuidados de saúde mental em Portugal.

Segundo o relatório, o número de psiquiatras aumentou globalmente no SNS nos últimos quatro anos, mas ainda há muitas desigualdades geográficas, tanto na psiquiatria de adultos como na da infância e adolescência.

Na área da infância e adolescência há apenas um psiquiatra no SNS no Algarve, no Alentejo há dois, na região Centro são 18, no Norte há 46 e em Lisboa e Vale do Tejo há 53.

A zona Norte e a região de Lisboa apresentam um rácio de sete psiquiatras de infância e adolescência por 100 mil habitantes menores de idade, enquanto o rácio no Algarve é de 1,1 e no Alentejo é de 2,5 por 100 mil.

Nas regiões autónomas, os Açores têm também apenas um psiquiatra nos serviços públicos de saúde e a Madeira tem três.

Ainda assim, o número de psiquiatras de infância e adolescência cresceu quase 25% entre 2014 e este ano, com um acréscimo de 24 profissionais.

Também na psiquiatria de adultos, o SNS teve um reforço de quase 28% no número de psiquiatras nos últimos quatro ou cinco anos, havendo atualmente 631 psiquiatras de adultos nas unidades de saúde públicas, que inclui os hospitais em regime de PPP.

Em termos de rácio, a psiquiatria de adultos regista melhores valores que a da infância e adolescência, com oito psiquiatras para 100 mil habitantes da população adulta.

Apesar do acréscimo de psiquiatras, há vários hospitais a ultrapassar os tempos máximos clinicamente aceitáveis para uma primeira consulta de psiquiatria, como Braga, Guarda, Setúbal, Júlio de Matos (Lisboa), Santa Maria (Lisboa) ou Santarém para as consultas muito prioritárias.

Contudo, o relatório nota que os tempos médios de resposta para primeira consulta de psiquiatria apresentaram melhorias entre o verão de 2018 e o verão de 2019.

Na análise ao panorama da saúde mental, o Conselho Nacional de Saúde salienta também que há uma “maior escassez” em outros profissionais da área além dos psiquiatras, referindo o caso dos psicólogos, terapeutas ou assistentes sociais.

Também em relação aos enfermeiros especialistas em saúde mental e psiquiátrica, há um desequilíbrio no rácio com os médicos, que é de apenas 1,6. Chega mesmo a haver serviços hospitalares com mais psiquiatras do que enfermeiros especialistas.

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