Ressaca de uma manhã submersa - TVI

Ressaca de uma manhã submersa

O PDiário foi ver o que sobrou do que a água engoliu em Sacavém. Dharam perdeu tudo, dentro da loja de filmes indianos, que abriu há três semanas. Zhou viu o bazar chinês dos irmãos ser destruído. Isabel e José recordam como anos de trabalho se desfizeram diante dos seus olhos Lisboa: 360 inundações em casas

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Água suja, água limpa. A água voltou à Praça da República, em Sacavém, desta vez de forma controlada para levar a lama e os detritos que nela se acumularam esta segunda-feira. Um dia depois de a vida ter ficado em suspenso, os moradores e os comerciantes voltaram a poder entrar nas suas casas e nos seus estabelecimentos.

Tentam agora salvar o que ficou submerso, sob dois metros de destruição líquida. Fazem contas aos prejuízos. E voltam a tentar recuperar anos de trabalho, liquefeitos em poucas horas.

O centro da praça é irregular, desnivelado, assimétrico. Agora mais. A madrugada anterior abateu-se sobre ela num turbilhão. A água ocupou todos os recantos e esquinas. Entranhou-se como um veneno letal nos móveis, electrodomésticos, colchões e nas vidas das pessoas. Não pediu licença para chegar nem para ir embora.

Mulher ainda desaparecida

«Agora não pago nada a ninguém»

José Marques, de 68 anos, não arreda pé. É dono do restaurante «O Degrau», ou do que resta dele. Transtornado, conta que esta é já a terceira vez que vê a água invadir-lhe o espaço. «Da última vez tive 38 mil euros de prejuízo. Sabe o que o seguro me deu? Quatro mil euros. Agora tenho ali uns 80 mil euros de prejuízo», explica ao PortugalDiário, enquanto aponta para dentro do restaurante, onde as marcas chegam ao tecto.

«Agora não pago nada a ninguém, nem ao banco pago. Não tenho nada. Só a roupa do corpo e o carro. Com uma reforma de 340 euros que não dá para pagar a renda da casa. O que é que vou comer?», questiona.

Filmes indianos que a água levou

Nos estabelecimentos vizinhos, lama entranhada em todo o lado. E enquanto José se queixa do atraso do seguradora para avaliar os estragos, ao seu lado, Dharam Veer recolhe para a rua blocos de lama com uma enxada, sem esperar por ninguém. Não tem a loja assegurada.

Numa placa por cima da cabeça, lê-se «Filmes Indianos com legendagem em português e francês». Mas a promessa não pode ser cumprida. Dharam perdeu tudo. O prejuízo pode ascender aos «15 mil euros», diz num português tão rudimentar como a ferramenta que tem na mão. «Três semanas aqui». Foi há quanto tempo abriu o estabelecimento.

«Não sei quando se perdeu»

Do outro lado da praça, Zhou, outro estrangeiro, aceita mostrar como ficou o bazar chinês dos irmãos. Está cinco degraus acima da rua, mas isso não impediu que a água subisse um metro e meio lá dentro. A assinatura da cheia na parede é evidente. «Não sei quanto se perdeu». E aponta para o fundo das prateleiras. «Ali», diz, «estavam os produtos mais caros».

Sem seguro, diz que vai ser muito complicado reactivar o negócio. Mas, mesmo assim, agita a vassoura e empurra um monte de entulho para a rua.

Do outro lado desta, sob o toldo laranja da pastelaria «Doces Misturas», Isabel Martins interrompe as limpezas. Explica que é a segunda vez que no último ano viu a água interromper-lhe o negócio. Uma linha castanha a dois metros de altura. «Da primeira vez tivemos quase 20 mil euros de prejuízo, o seguro pagou cinco mil. Agora o prejuízo é para cima de 50 mil». Foi tudo engolido pela água. Desde as arcas frigoríficas, ao forno de 2500 euros comprado há uma semana.

Um gato, um cão e uma porta que não fecha

Ana Domingues assiste desde a janela aos trabalhos dos moradores, dos funcionários da junta e das máquinas da câmara. Tem um cão nos braços e dentro da habitação, onde acede a entrada ao PortugalDiário, descobre-se um gato ainda assustado.

O chão da casa revela as cicatrizes da noite anterior, que tornam mais fácil visualizar como seria ter meio metro de água e lama lá dentro. Perderam-se os móveis e a porta de entrada não fecha. Ana está agora na casa do filho. É um dos 12 desalojados de Sacavém, que tentam recuperar o que a água levou, mesmo sabendo que esta poderá voltar um dia destes.
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