"Estamos a rebentar com o Serviço Nacional de Saúde" - TVI

"Estamos a rebentar com o Serviço Nacional de Saúde"

Saúde (Foto Cláudia Lima da Costa)

Raquel Varela, autora de um estudo encomendado pela Ordem dos Médicos, afirma que o que ainda faz funcionar o SNS é o esforço dos médicos

O esforço dos médicos que “trabalham mais por menos dinheiro” é o que “ainda” faz funcionar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), disse à Lusa Raquel Varela, autora de um estudo encomendado pela Ordem dos Médicos.

Devido ao aumento das tarefas, do trabalho e da diminuição do rendimento, estamos a rebentar com as pessoas e estamos a rebentar com o Serviço Nacional de Saúde (SNS)”, sustentou a historiadora, coautora do estudo, acrescentando que, no mínimo, vão ser precisos “trinta anos para corrigir a situação”, caso exista vontade política.

Raquel Varela e Renato Guedes, da Universidade Nova de Lisboa, são autores do estudo científico “Evolução do Esforço Médico no SNS depois do ‘Memorando de Entendimento’”, encomendado pelo Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos e que vai ser apresentado publicamente no dia 3 de dezembro, em Lisboa.

Hoje, o que faz funcionar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) com menos dinheiro é o facto de os médicos receberem menos e trabalharem mais. Não são modificações de gestão, melhores condições de trabalho ou controlo de gastos. O que manteve a prestação dos cuidados de saúde são os médicos que passaram a trabalhar mais por menos”, acentuou Raquel Varela.

A investigação aborda as características históricas da prestação dos serviços de saúde desde o Estado Novo e prolonga-se até ao século XXI.

Entre outros aspetos, o estudo conclui que após a aplicação do ‘Memorando de Entendimento’ da troika, a produção de cuidados de saúde (o mesmo número de consultas ou atendimentos) é mantida "com menos dinheiro e menos investimento".

De acordo com os investigadores, o atual funcionamento do SNS é feito à conta da intensificação do trabalho dos médicos e dos internos, sobretudo os médicos mais jovens; da intensificação do trabalho dos médicos de família e também dos enfermeiros e pessoal auxiliar.

A atual situação de “precariedade” foi causada pela aplicação de políticas pelo governo PSD/PP, que “não foram em nada revertidas pelo PS”, salientou Raquel Varela.

A única maneira de acabar com estas políticas era acabar com os hospitais SA/EPE”, defendeu a investigadora, recordando que o sistema português foi um dos melhores do mundo, após 1974.

“Desde o final dos anos 1990, começamos a voltar ao sistema anterior. Por diversos fatores, já não podemos falar de um SNS para todos porque as mudanças que se deram são qualitativas. Neste momento, aqueles que têm dinheiro, têm acesso a uma saúde boa e rápida, e quem não tem dinheiro não têm esses cuidados”, acrescentou Raquel Varela.

De acordo com a historiadora, o centro de saúde já não dá respostas e "destina-se" a reformados, desempregados e à prestação de cuidados de saúde maternoinfantis.

“Os centros de saúde estão abertos a horas impossíveis para os trabalhadores. Só trinta por cento das consultas de especialidade nos hospitais é que são referenciadas pelo médico de família. O hospital é cada vez mais um centro de treino como era no Estado Novo. Os nossos números mostram que os médicos estão em treinamento, em grande número. Ficam em formação no hospital e depois saem para trabalhar fora do SNS ou então não ficam em pleno ou em regime de exclusividade”, concluiu Raquel Varela.

SNS aumentou recurso a médicos "em fase de formação"

O Serviço Nacional de Saúde aumentou o recurso a médicos “em fase de formação na especialidade”, e que transitam depois para o setor privado, degradando a situação de profissionais e utentes, indica um estudo a divulgar em dezembro.

É como se o Serviço Nacional de Saúde voltasse ao registo anterior a 1960, em que os hospitais eram centros de tratamento de pobres e, por essa via, de formação – sendo que os médicos após essa especialização passam a atender nos consultórios privados e em clínicas”, conclui o estudo encomendado pelo Conselho Regional Sul da Ordem dos Médicos.

As conclusões da investigação apontam para uma “evolução miserável” do número de médicos a exercer no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sobretudo tendo em conta os profissionais formados pelo Estado, mas também para a degradação dos cuidados primários.

O número de profissionais médicos a exercer no SNS teve uma evolução miserável se considerarmos o potencial em número de médicos formados desde a década de 1970, em particular, desde a criação do SNS. Verifica-se, nas nossas conclusões, a evolução negativa nos cuidados primários de saúde. Isto é, são formados muito mais médicos pelo SNS do que aqueles que ficam a trabalhar nele”, indica o documento.

O estudo estabelece também uma relação entre as várias investigações já realizadas sobre o “burnout” (esgotamento) a que os médicos estão sujeitos desde a aplicação das medidas impostas pela troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), através do Memorando de Entendimento (17 de maio de 2011).

O ritmo de produtividade, refere o texto, está a ser marcado pela utilização da força de trabalho “até níveis próximos do seu limite”.

Em perspetiva, o trabalho indica também que, em Portugal, o sistema de saúde “de ponta” só foi alcançado após a revolução de 1974.

A revolução, isto é, a luta política organizada, que gerou uma transferência de 18 por cento do rendimento do capital para o trabalho, em grande medida na criação de um Estado Social, impôs a junção entre previdência e assistência dando o passo fundamental para a criação do SNS, que se oficializou em 1979", conclui a investigação.

Esta situação, prossegue o estudo, criou “de facto” uma "elevação" salarial significativa, permitindo “resultados extraordinários”, do ponto de vista do acesso a cuidados de saúde, “colocando Portugal entre os melhores, mais eficientes tecnicamente e mais justos sistemas de saúde do mundo”.

A segunda parte do estudo analisa as formas de privatização do sistema público de saúde britânico que criou uma “indústria de cuidados de saúde”, transformando um “serviço público essencial em lucro”.

Além dos académicos portugueses, o estudo incluiu as participações de quatro cientistas sociais anglo-saxónicos: Ursula Huws, Stewart Play, Colin Leys e Peter Kennedy, que se debruçam sobre as formas e consequências da privatização do National Health Service, no Reino Unido.

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