Cabul não pode acabar nunca  - TVI

Cabul não pode acabar nunca

Comandos das Forças Armadas no Afeganistão [Foto: site oficial Estado-Maior-General das Forças Armadas]

No fim da missão, «o mais difícil é o regresso». Dois militares portugueses que estiveram no Afeganistão contam como foi e como é complicado voltar a ser um cidadão comum, em Portugal, sem estar 24 sob 24 horas alerta. O que fica de uma missão é, não só a gratificação profissional, mas – e muito – o lado humano: «Em Cabul, segurança é quase tão essencial como comer»

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Afeganistão. Risco, exigência, responsabilidade, concentração, foco. E, no final, a gratificação. São palavras unânimes entre camaradas para descrever as 24 sob 24 horas, durante seis ou sete meses, que enchem uma missão. «Por algum motivo, somos tropas especiais. Custe o que custar, é sempre por um bem melhor». Diz Marco, 37 anos, ex-comando. Treze anos depois, a presença militar portuguesa das Forças Armadas, em parceria com a NATO, chega ao fim. Esta quarta-feira, os últimos 56 militares portugueses deixam o país. Acabou-se Cabul? De todo. Está prevista uma nova missão de apoio, mas com apenas 10 efetivos. E Cabul não pode acabar nunca.

Fica na memória dos militares como uma das - senão a - missão mais importante. Profissionalmente, ali, aplicaram tudo o que aprenderam. Numa cidade onde «80% do ar são fezes evaporadas», onde se vive no «limiar da sobrevivência» e onde há insurgentes talibãs infiltrados a cada esquina, o mais difícil, por incrível que possa parecer, «é o regresso». Diz Manuel (nome fictício), 31 anos e muita experiência. Está há 15 na vida militar.

Cerca de 3.300 militares portugueses passaram por lá. Dois deles morreram. Ambos em meses negros de novembro: o primeiro-sargento João Paulo Roma Pereira, 33 anos, que foi apanhado na explosão de uma mina anticarro, em 2005. Deixou mulher e uma filha bebé. O outro, o soldado para-quedista Sérgio Pedrosa, 22 anos, faleceu num acidente com um blindado durante uma patrulha noturna, dois anos depois.

Agora, também em novembro, é hora de retirada. De todos os outros, que sobreviveram. O que fica, um legado de imposição de paz, primeiro, e de monitorização, depois. Os nossos ajudaram a travar a movimentação das tropas talibã, de mãos dadas com o risco e com a sorte. Ajudaram na distribuição de mantimentos à população. Ajudaram a controlar a divisão de segurança de Cabul. Ajudaram na monitorização, acompanhamento e formação do exército afegão, desde que foi criado. Com uma série de sobressaltos:
 

«Entre 10% a 15% dos militares afegãos eram insurgentes talibãs. É fácil infiltrarem-se. Aconteceu, várias vezes, acompanharmos uma sessão de [treino] de tiro e algum dos recrutas que dava formação era insurgente. De repente, virava-se para trás, com a arma, e atirava para os internacionais», conta Manuel. «A sorte protege os soldados. No meio de tantos incidentes, tivemos bastante sorte».


Marco também: «Tivemos um episódio de ataque iminente e acabámos por emboscar e sair emboscados, mas não chegou a haver tiros, nem confronto com o inimigo. Houve calma, até perceber o que se passava».

O teatro de operações era «bastante difícil». A todos os níveis. O que vemos na televisão mostra muito pouco. «De todos, é o mais particular onde estive. Desde o terreno, ao clima, à cultura. O ambiente que senti mais hostil. O país é enorme, extremamente montanhoso, difícil de controlar. A guerrilha, muito difícil de combater e muito imprevisível», explica Manuel. Mesmo com tantos meios militares, de vários países. «Estava lá tudo». Mas não se evitaram «baixas».

 
A morte dos dois camaradas portugueses teve um o impacto «muito grande». «Estamos preparados, temos de ultrapassar e seguir em frente, mas ainda hoje é sentido. Temos noção da grande dificuldade e do risco inerente e que pode acontecer a qualquer um de nós». O primeiro militar português a morrer era instrutor de Marco. Um camarada com quem aprendeu tanto.

Ambos concordam que esta foi, até agora, a missão de maior responsabilidade. «Os comandos fizeram um excelente trabalho e ficaram com uma imagem muito positiva», diz Manuel, que não desempenhou, apenas, essas funções na carreira. Não é falsa modéstia. São estatísticas. «É justo que seja reconhecido. Estiveram à altura».

«Crianças serviam de escudo para nós»

Os sete meses de Marco em Cabul pareceram menos tempo. «Sinceramente». «Tínhamos missões, de alto risco, depois o convívio com as tropas internacionais, com os nossos camaradas, os jogos, o ginásio, o bar e o restaurante». 24 sob 24 horas alerta e o tempo a passar rápido.

«Não podemos dizer que tínhamos saudades [de Portugal] porque as missões eram curtas». E havia muito para fazer, para intervir, para controlar, para observar. «Ao contrário do Iraque, no Afeganistão a presença de crianças acabava por ser dissuasora dos talibã. Acabavam por ser um escudo para nós. A probabilidade de acontecer um ataque era muito menor».



Como era, então, o contacto com os locais? Nas missões de acompanhamento, era normal que, sobretudo os jovens que arranhavam o inglês, se mostrassem curiosos e fizessem perguntas. Mas nada como em Timor, onde Marco também esteve. A língua era a mesma e, desde idosos a crianças, havia convívio mais do que esporádico.

«O afegão é extremamente fechado ao estrangeiro. Somos vistos como infiéis», resume Manuel. Não sem especificar que, na última missão notou já mais abertura.

«Em Cabul, segurança é quase tão essencial como comer»


A capa de comando e a postura firme escondem, à primeira vista, o humanismo destes profissionais. Mas Manuel assegura que «90% da missão é a parte humana». Mesmo no terreno, com aquele foco todo. «Não há volta a dar. Quando isso existe, o resto funciona naturalmente».

Tanto que os militares, ao cumprirem o seu dever, vão ingerindo o «sumo» daquela realidade, vão digerindo as condições precárias em que vive aquela gente. «O que fazem à mulher afegã e as condições de vida em que as pessoas vivem... São mesmo muito baixas, no limiar da sobrevivência».

Convicto de que as pessoas, em Portugal, não têm noção do que se passa, Manuel quis partilhar com a TVI24 um episódio:
 
 

«Uma das coisas que me impressionou foram as condições de vida extremamente baixas. Nunca vi um afegão gordo lá». E isso tem uma explicação: pouca comida, água de má qualidade, cuidados de saúde muitos nem sabiam o que era. «Mas quando perguntei do que é que mais precisavam, todos responderam a mesma coisa: segurança. Lá não têm. E há muito tempo. A segurança é quase tão essencial como comer».


«As mães estão em Portugal sempre a bater coração»


Para quem fica em casa - a família, as mães «galinha», as mulheres, os filhos -, o óbvio aperto no peito. «Nós estamos mais descansados. Elas estão cá sempre a bater coração», reconhece Marco. «Nesta última missão, a minha mãe já estava mais calma. Já tinha tido outras, em Timor, no Iraque».

A maior emoção que viveu foi mesmo no seio da família militar. A irmã de um camarada foi uma das raparigas mortas por um ex-GNR de Santa Comba Dão, em 2007. «Tocou-nos a todos. Estávamos todos juntos quando ele soube, pela televisão, e explodiu. Foi a altura mais emotiva, que mais deu que pensar no que toca à família».

A missão. Sempre a missão no horizonte a norteá-los, para ultrapassarem essas fraquezas. O dever para cumprir. O dever cumprido. «Mais do que deitar dinheiro fora, como o povo português normalmente acusa, enfiando a farinha toda no mesmo saco, se os portugueses estivessem na mesma situação do que os afegãos, também gostariam que alguém os ajudasse a ter mais harmonia ou, pelo menos, a que o dia-a-dia fosse mais fácil de passar», ilustrou Marco.

«E uma coisa é a TV, outra é ‘o que isto, onde é que eu estou’» quando se aterra em Cabul, adverte, por sua vez, Manuel. De qualquer modo, «o mais difícil nem é quando se vai daqui para lá, porque ao chegar temos de nos adaptar rapidamente, a exercer o trabalho, concentrado em cumprir».



Na volta da primeira missão, não tirou os olhos da janela do comboio, já em solo português. Estava colado a apreciar a paisagem, as cores verdes. «Ia a desfrutar como se fosse a melhor coisa que me estivesse a acontecer. Olhava para os restantes passageiros e pensava se alguém tinha a noção de quanto é bom estarmos aqui e termos este país. Eu vinha daquele lugar e tinha noção disso. E até me senti privilegiado de ter passado por aquela experiência». A sensação de «chegar vivo a casa», acrescenta Marco.

Complicado é voltar a ser um cidadão comum, no fim da missão. Manuel não tem dúvidas:
 

«O mais difícil é o regresso. Os primeiros quatro a seis meses. Lá são 24 sob 24 horas focados naquilo. Mesmo no campo, em alturas de convívio, estamos em alerta máximo. De repente, em Portugal, até é mais difícil. Ia na rua e estava atento a tudo. Dava por mim a chegar a um ponto de ter de dizer a mim mesmo ‘calma, já acabou’. O regresso é um grande desafio, por mais experiência que se tenha. Voltar à família, aos amigos, ao meio comum».


No fundo, resume, «desligar sentidos».
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