Mais de 15 mil pessoas foram vítimas de tráfico na União Europeia - TVI

Mais de 15 mil pessoas foram vítimas de tráfico na União Europeia

Refugiados (Lusa/EPA)

Rasto do dinheiro e procura são essenciais para combater tráfico humano. Casos mais registados em Portugal são de exploração laboral

Mais de 15 mil pessoas foram vítimas de tráfico na União Europeia (UE) em 2013/2014, mas “o número real é suscetível de ser substancialmente mais elevado”, reconhece o último relatório da Comissão Europeia sobre o tema.

O último relatório da Comissão Europeia sobre os progressos realizados em matéria de luta contra o tráfico de seres humanos conclui que, entre 2013 e 2014, o período mais recente objeto de análise, 15.846 mulheres, homens, meninas e meninos foram vítimas de tráfico na UE, mas apenas 6.324 pessoas tiveram contacto oficial com a polícia ou com o sistema de justiça penal.

De acordo com o relatório, o tráfico de seres humanos para efeitos de exploração sexual continua a ser a forma mais comum (67% das vítimas), seguindo-se o tráfico para exploração laboral (21%).

Mais de três quartos das vítimas registadas eram mulheres, percentagem que sobe para 95% no caso da exploração sexual, “uma das tendências que aumentou mais acentuadamente”, segundo o relatório.

Estamos particularmente preocupados com as mulheres e crianças, sobretudo para exploração sexual”, reconhece a coordenadora da União Europeia contra o tráfico de seres humanos.

Em entrevista à Lusa, a propósito do Dia Mundial Contra o Tráfico, que as Nações Unidas assinalam a 30 de julho, Myria Vassiliadou assinala que, por outro lado, “a maioria dos traficantes e certamente todos os clientes são homens”.

O relatório também destaca as ligações entre o tráfico de seres humanos e outras formas de criminalidade e a exploração dos mais vulneráveis no contexto da atual crise de migração, bem como o aumento da utilização da internet e das novas tecnologias para o recrutamento de vítimas.

De acordo com o mesmo relatório, os países europeus com mais vítimas são Roménia, Bulgária, Holanda, Hungria e Polónia.

Nigéria, China, Albânia, Vietname e Marrocos são os principais países terceiros de nacionalidade das vítimas - vítimas, que, em 65% dos casos, eram cidadãos da União Europeia.

Não obstante os progressos realizados, os Estados-membros da UE devem intensificar os seus esforços para lutar eficazmente contra o tráfico de seres humanos”, conclui o relatório.

Rasto do dinheiro e procura são essenciais para combater tráfico

A coordenadora da União Europeia contra o tráfico de seres humanos considera que há um excessivo foco nas vítimas, sendo fundamental seguir o rasto do dinheiro e lidar com a procura.

Myria Vassiliadou sublinha que dizer que uma pessoa foi traficada significa que “alguém a comprou, alguém a vendeu e alguém usou os seus serviços”.

Correndo o risco de “parecer sem coração”, a responsável sublinha que “já é um pouco tarde para as vítimas”, sendo fundamental recordar que “o tráfico é só sobre dinheiro, astronómicas quantias de dinheiro, e procura dos serviços das vítimas”.

E, destaca, nem todo o dinheiro envolvido é ilegal. Por exemplo, se uma menina vem da Líbia num barco para Itália, depois alguém a põe num autocarro, terá de ficar nalgum lado durante a noite e o traficante pagará a um hotel. “Quem está a fazer dinheiro, legal, com a situação? Não falamos sobre isso. Há muitas questões que devíamos fazer e não fazemos”, condena.

“Devemos pensar um bocadinho mais nas coisas e parar de pensar apenas ‘estas crianças são vulneráveis’, mas começar a perguntar quem está a abusar delas, quem está a usar os seus serviços e quem está a fazer dinheiro com elas”, sustenta, frisando: “se passarmos por alguém traficado na rua e seguirmos caminho, somos parcialmente responsáveis.”

Se nos cruzamos com uma jovem nigeriana de 13 anos nas ruas de uma capital europeia, como Lisboa, ela é 'apenas' uma jovem de 13 anos desafortunada. As perguntas que não fazemos são ‘quem a vendeu?’, ‘quem a comprou?’, ‘quem usou os seus serviços sexuais?’, ‘quem a violou’?”, lamenta Myria Vassiliadou.

“A polícia está mais alerta do que antes, mas, às vezes, (...) só encontramos aquilo que procuramos. Não estamos a procurar vítimas o suficiente”, considera. “Muito poucas vítimas são identificadas pelas autoridades”, reconhece.

Este é um dos “grandes problemas” que o combate ao tráfico de pessoas enfrenta. O outro é a falta de investigação ao rasto do dinheiro. A Europol fala em 30 mil milhões de euros, apenas na Europa, naquele é o segundo tráfico mais lucrativo do mundo, só atrás do comércio ilegal de armas.

Segundo a polícia europeia, comprar uma criança, nos dias de hoje, custa entre quatro a oito mil euros, mas “as boas crianças” podem chegar aos 40 mil euros. "Como é que se pode comprar uma criança, em dinheiro, por 40 mil euros, dá-los a outra pessoa e ninguém investigar esse dinheiro”, interroga Myria Vassiliadou.

Por outro lado, sublinha a coordenadora, deve questionar-se o que está o sistema a fazer para pôr essas pessoas atrás das grades. “As acusações e condenações são muito baixas para o que a situação exige. Por que não estão presas essas pessoas”, pergunta.

Em todos os crimes no mundo, (…) o envolvimento é punido com sanções (...), mas, se for tráfico de seres humanos, e souber disso, não há penalização em muitos Estados-membros”, alerta.

Vassiliadou compara com a compra de uma mala na rua, sabendo que é falsa ou roubada. “Serei punida, mas, se comprar uma nigeriana de 19 anos, não pago multa”, repara. “A lei deve existir para dizer o que se pode ou não fazer. Não é certo roubar, mesmo que se diga ‘não sabia que era teu’. Que mensagem passamos, como sociedade, quando não criminalizamos isto”, questiona.

“Estamos todos envolvidos e somos todos responsáveis. (...) Às vezes acho que optamos por não falar disso, não ver isso, porque é demasiado desconfortável”, observa.

O que faz o tráfico acontecer (…) são os lucros astronómicos, as astronómicas quantias de dinheiro, para os criminosos e também para a economia legal, e a procura por vítimas”, destaca.

O que as vítimas têm em comum é serem vulneráveis – “podem ser pobres, podem estar a fugir da guerra, podem ser crianças ou mulheres de contextos familiares violentos” –, mas “o tráfico não acontece por as pessoas serem vulneráveis”, frisa.

“Os Estados-membros estão a fazer um bom trabalho”, avalia, sublinhando que todos, exceto a Alemanha, verteram a legislação comunitária para as leis nacionais. “Já fizemos um grande caminho, nos últimos quatro ou cinco anos. Há mais esforços em curso, mas não significa que seja suficiente”, diz Myria Vassiliadou.

Os relatórios não concluem que existe uma relação entre a vaga de migrantes e refugiados e um aumento no tráfico de seres humanos, mas há hoje “mais pessoas vulneráveis” e, portanto, “quem quer explorar, terá terreno mais fértil para isso”, assinala. “Não significa que cada refugiado é traficado, temos de ser claros, mas quer dizer que as pessoas ficam mais frágeis”, reafirma.

Casos de tráfico humano em Portugal são de exploração laboral

Os casos de tráfico de seres humanos mais registados em Portugal estão relacionados com a exploração laboral, nomeadamente no setor agrícola, disse à Lusa a diretora do Observatório do Tráfico de Seres Humanos (OTSH).

Em Portugal, como noutros países, o que tem sido mais registado e também mais identificado é o tráfico para fins de exploração laboral, nomeadamente no setor agrícola”, disse Rita Penedo, em entrevista à agência Lusa.

A diretora do Observatório explicou que, pelo próprio ‘modus operandis’ deste tipo de exploração laboral, o número de vítimas é “quantitativamente maior”, comparativamente a outras formas de exploração.

O relatório do OTSH, relativo a 2015, refere que 65% das situações de exploração laboral ocorrem sobretudos em áreas rurais, e que a maior parte das vítimas portuguesas no estrangeiro são exploradas na agricultura (48 casos em 2015).

No ano passado, foram sinalizados, em Portugal, 193 casos suspeitos de vítimas de tráfico de seres humanos (menos quatro face a 2014), 135 dos quais relativos a situações detetadas em Portugal e 58 a portugueses no estrangeiro, informa o documento.

Estamos a falar de um crime que, do ponto de visto quantitativo, não é representativo, mas não é por isso que é menos importante, até porque a questão das cifras negras neste crime pode ter alguma expressividade”, realçou a diretora do observatório, tutelado pelo Ministério da Administração Interna.

Sobre o modo de recrutamento utilizado pelos traficantes, Rita Penedo explicou que são de vários tipos, desde anúncios, através de familiares ou pelo método “passa a palavra”, utilizado para fins de exploração laboral, em que a vítima involuntariamente acaba por recrutar outras vítimas.

Em regiões mais carenciadas ou com situações de exclusão social e taxas desemprego mais elevadas, a vítima pode conhecer familiares, amigos, vizinhos e involuntariamente” recrutá-los para situações de tráfico, indicou.

Em Portugal e noutros países, como Espanha e Roménia, são, por vezes, estruturas mais familiares a fazer o recrutamento “e não propriamente redes de crime organizado transnacional”, observou.

Para Rita Penedo, a prevenção “é muito importante” para prevenir estes casos e evitar que as vítimas, depois de resgatadas, voltem a cair nestas redes, quando regressam aos seus locais ou países de origem.

“O retorno assistido” tem de ser “ainda mais consolidado e robustecido”, porque as “situações de desespero levam, às vezes, que a pessoa tente novamente a sorte”.

Apesar das autoridades fazerem a avaliação de risco, “as vítimas fazem a sua própria avaliação e a sua própria análise e, por vezes, aquilo que lhes é pago, é dinheiro” nos locais onde vivem e voltam à condição de vítima.

Para a responsável, a formação contínua dos profissionais que estão no terreno é essencial para saber reconhecer o crime e lidar com as vítimas.

Mas a sociedade também tem de “estar alerta” e denunciar este crime público, como já acontece com as situações de violência doméstica.

“Em relação ao tráfico, ainda está um pouco apartada”, porque acha que estes casos só acontecem aos estrangeiros, considerou Rita Penedo.

Mas, frisou, “é indiferente” se acontece a estrangeiros ou a portugueses. “São pessoas e isto é um crime contra a liberdade pessoal, é uma grave violação dos direitos humanos. É importante fazer esta sensibilização.”

É preciso também reforçar o conhecimento que se tem sobre o fenómeno para “melhor intervir, melhor apoiar, melhor condenar e prevenir”.

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