Histórias da Boa-Hora - TVI

Histórias da Boa-Hora

O tribunal que julgou os casos mais célebres da justiça portuguesa diz adeus

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«Caso Julgado». As palavras categóricas, ouviu-as o juiz Ricardo Cardoso directamente da boca do ministro Alberto Costa.

Decidida a transferência do Tribunal da Boa-Hora para o Campus da Justiça, no Parque das Nações, o juiz do laço, como ficou conhecido, tomou as dores do «Movimento em defesa da Boa-Hora» para evitar que o antigo convento dos frades dominicanos, do século XVI, dê lugar a um hotel de charme. A batalha está quase ganha. O espaço deverá ser ocupado pelo Tribunal da Relação de Lisboa

Pelo edifício da Boa-Hora passaram julgamentos históricos como os de Mário Soares e Álvaro Cunhal, durante o antigo regime, bem como os processos das FP25, Pedro Caldeira, Costa Freire, Dona Branca e Vale e Azevedo.



O actual desembargador da Relação de Lisboa conhece como poucos os 166 anos da história judiciária de um tribunal onde passou apenas 20.

Numa visita guiada ao único tribunal criminal português do século XIX que nunca aplicou a pena de morte [abriu em 1843 e a pena capital foi abolida em 1867], o juiz detém-se na sala com «a parte mais negra da história» deste edifício. No tribunal plenário foram julgadas mais de três mil pessoas.

A jornalista Diana Andringa é um dos três mil prisioneiros políticos ali julgados porque, conta, apoiava o Movimento Para a Libertação de Angola (MPLA). Há 36 anos atrás, foi condenada a 20 meses de prisão.



José Augusto Rocha, o advogado que a defendeu, assim como ao político Fernando Rosas e à procuradora geral adjunta Maria José Morgado, recebeu ordem de prisão dentro do tribunal por defender a presença do público na sala de audiências.

Da história mais recente, Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, recorda a década de 90 passada no Tribunal da Boa-Hora. Na memória guarda momentos caricatos, como os vividos por alturas do julgamento do Capitão Roby: «a presença das 200 queixosas nos dias de julgamento era algo fora do normal».

Também recorda momentos comoventes, como o processo do homem que assaltou a loja das noivas e roubou apenas um vestido, deixando para trás todo o dinheiro da caixa registadora e outros bens valiosos. Tudo porque «ia casar e a mágoa da noiva era não ter dinheiro para comprar um vestido». O roubo ficou provado, mas o juiz aplicou uma pena muito leve, suspensa por dois meses.

Momentos houve, até, em que preferiu fechar os olhos à lei para evitar uma injustiça maior. «Na altura já havia milhares de cheques sem provisão emitidos para compra de bens alimentícios». Quando os oficiais de justiça iam notificar as pessoas e verificavam as condições miseráveis em que viviam, «muitas vezes fechavam os olhos» e davam as notificações sem efeito.

O estatuto de advogado dos famosos colou-se à imagem de José António Barreiros, mas não é de José Manuel Beleza ou de Vale e Azevedo que se lembra quando lhe pedimos para recordar os momentos mais marcantes na Boa-Hora: um dia defendeu em segredo o filho de um grande amigo. «O jovem foi absolvido. Até hoje partilhamos este segredo», conta.

Numa noite, o advogado recorda o comentário de um arguido ao deixar a sala de audiências e passar pelo pátio: «Cheira bem aqui fora», terá dito o homem. «Percebi que a liberdade pode ser isto, cheirar tão bem cá fora . . .»

Os escritos que enchem as paredes e até o tecto das celas, mostram que Barreiros não foi o único a aprender aqui esta lição:

A vida tem destas coisas, o que vale é que não nasci aqui e certamente aqui não vou morrer».. Força miúdas, isto é uma pedra no nosso caminho, façamos dela um degrau para subir na vida, bjs».
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