Maria Barroso, 90 anos de uma vida preenchida - TVI

Maria Barroso, 90 anos de uma vida preenchida

Depois de dez dias em coma, devido a uma queda em casa, a mulher de Mário Soares morreu no Hospital da Cruz Vermelha

Morreu Maria Barroso. Antiga primeira-dama e mulher de Mário Soares faleceu aos 90 anos. Uma mulher de armas, que perdeu a batalha da vida. Maria Barroso, faleceu esta terça-feira, vítima de uma hemorragia intracraniana, depois de ter caído em casa no dia 26 de junho, estando desde então em coma profundo.

Levada pelo sobrinho Eduardo Barroso para o Hospital da Cruz Vermelha nessa noite, nada fazia crer que Maria de Jesus Barroso, de 90 anos, estivesse, horas depois, a lutar pela vida.

“Teve um dia felicíssimo. Perfeitamente lúcida, preocupada até com o facto de nós acharmos que não era preciso tirar o robe e vestir um vestido [para ir ao hospital]. Portanto, com uma lucidez total”, revelou o sobrinho. 


Maria Barroso tinha 90 anos de uma vida preenchida 


Na apresentação da sua biografia, em 2012, escrita por Leonor Xavier, Maria Barroso foi modesta: “Não me considero um exemplo mas sim uma cidadã com consciência, que procurou sempre cumprir esse exercício de cidadania o melhor possível”.

Ao seu lado estava Mário Soares, companheiro de vida e de lutas. Juntos há quase 70 anos.

“Quando vejo o meu marido, vejo exatamente o mesmo homem que conheci há 70 anos. Com a mesma ternura, a mesma simpatia e a mesma admiração por tudo o que foi a sua vida”, disse ao jornal i há dias.


Maria Barroso tinha 90 anos completados há dois meses. Nascida a 2 de maio de 1925, na Fuseta, em Olhão, Maria de Jesus Barroso, era filha de um oficial do exército e opositor da ditadura. Por essa altura, em entrevista ao jornal i, a antiga primeira-dama, não se prendeu ao passado:

“Só penso no passado para ver o que não fiz e ainda posso fazer. Gosto de me projetar no futuro, de ajudar os mais novos e de seguir o que se passa, o que se diz, o que se pensa” e, por isso, mostrou-se “preocupada com o nosso país, com a Europa e com o mundo, “mas sempre com esperança”.


Uma esperança que não quer dizer fé? Maria de Jesus ia à missa em criança, mas afastou-se da religião na vida adulta, até um dia. Até ao acidente de avião do filho João.

“Pedi a Deus e senti-me bem nesse novo encontro com a religião”, disse ao i. Conheceu vários Papas e não escondeu a admiração por Francisco.


João Soares sobreviveu, graças à medicina ou a Deus. Uma provação entre muitas na vida desta mulher discreta, mas lutadora, que cedo começou a sofrer: o pai foi preso. Várias vezes. Esteve no golpe contra a ditadura em 1927. O sogro também lá estava. Coincidências. Maria de Jesus Barroso tinha seis irmãos. A mãe acabou por falecer poucos meses após a morte do pai. Uma história de amor que sempre a emocionou e comoveu e que lhe serviu de exemplo.

Anos mais tarde, foi ela que precisou da fé, quando tirou um peito por lhe ter sido diagnosticado cancro da mama.

Em entrevista ao Expresso, em 2009, confessou que a fé ajudou-a a “encarar a possibilidade de ir embora com uma certa tranquilidade”. Não foi.
 

Mário Soares, o amor da sua vida e de uma vida


A vida ao lado do marido Mário sempre foi preenchida, mas também difícil.

Conheceu Mário Soares na faculdade. Ao i recordou esse momento: “Estava sentada num banco da antiga Faculdade de Letras e, imagine, estava a chorar”, disse Maria Barroso a Luís Osório. A estudante universitária estava dividida entre o curso na Faculdade de Letras e o curso de teatro e tinha faltado a uma cadeira por causa de um ensaio.

Em 2004, ao DNa, numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, disse: “As mulheres têm isto. Para além de terem que fazer o discurso, têm que decidir o que é o almoço, o que é o jantar... Eu encontrei no meu marido o desejo de lutar por um mundo melhor. Isso foi uma das coisas que me atraíram extraordinariamente e me fizeram aproximar dele”.

Acabaram por casar quando ele estava preso por motivos políticos, a 22 de fevereiro de 1949. Um casamento pelo civil, sem pompa, por procuração.

“Não podia visitá-lo se não estivesse casada com ele. A polícia política não deixava que pessoas de fora, apenas amigos, se visitassem. Foi um ponto de partida importante na nossa vida. Em 68 vou viver com ele para S. Tomé, quando é deportado; se houvesse apenas uma relação de amizade seria muito difícil”, explicou ao DNa, na altura.


O maior arrufo que tiveram foi, talvez, mesmo o momento da fundação do PS, em que esteve contra Mário Soares, mas que veio mais tarde a dar-lhe razão, como explicou ao Expresso.

Baixa, franzina, elegante, Maria Barroso nunca foi a mulher por trás do homem, mas antes ao lado do homem. Foi atriz na companhia de teatro Rey Colaço-Robles Monteiro, que ficava no Teatro Nacional D. Maria II, mas abandonou a carreira para se dedicar ao marido, aos filhos e à luta política, ou não tivesse sido fundadora do Partido Socialista e a única mulher a fazer parte da reunião da sua fundação, na Alemanha, quando o marido estava em Paris e ela, em Lisboa,  tentava sustentar a custo a família, proibida de ensinar pelo regime e com os dois filhos a cargo, Isabel e João. Nunca foi presa, mas interrogada várias vezes.

Licenciada em Histórico-Filosóficas, com o curso de arte dramática do Conservatório Nacional, Maria Barroso possuía ainda Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Aveiro, pela Universidade de Lisboa e pelo LesleyCollege de Boston e foi diretora do Colégio Moderno, fundado pelo sogro. 

Presidente da Pro Dignitate - Fundação de Direitos Humanos e da Fundação Aristides de Sousa Mendes, Maria Barroso foi agraciada com 28 condecorações e outras distinções académicas e honoríficas entre as quais a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.
 

A eterna primeira-dama


Ainda lhe chamavam primeira-dama, embora já lá fossem muitos os anos que tivesse deixado Belém. Afinal, também ela teve uma carreira política.

Em 1969 foi candidata a deputada pela Oposição Democrática e em 1973 esteve, como se disse, em BadMünstereifel aquando da fundação do Partido Socialista. Foi eleita deputada à Assembleia da República, pelos círculos de Santarém, Porto e Algarve, nas legislaturas de 1976, 1979, 1980 e 1983.

Entre 1986/1996 foi efetivamente primeira-dama de Portugal. Nesse período foi uma primeira-dama ativa e que não parou, mesmo depois do marido abandonar as funções presidenciais. A partir de 1997 presidiu à Cruz Vermelha Portuguesa, cargo que exerceu até 2003, entre outras causas a que deu corpo e voz na defesa da família, contra o racismo e a xenofobia.

Com a poesia e a representação sempre no coração, anos mais tarde, o "bichinho" voltou, e teve participações nos filmes de Paulo Rocha, "Mudar de Vida", em 1966, e de Manoel de Oliveira, " LeSoulier de Satin", "Amor de Perdição"e "Benilde ou a Virgem Mãe", nas décadas de 70 e 80. 
 

“Parar é morrer”


“Parar é morrer, diz o povo”. Disse Maria Barroso ao DNa, já com mais de 70 anos, mas sempre ativa e pautando-se sempre pela discrição: “Não deixo nada de especial. É uma atuação, uma vida alimentada pelos grandes valores que eu própria assumi dos meus pais: o respeito pelos outros, o sentido da solidariedade com aqueles que são os mais frágeis na sociedade, o amor ao próximo, o respeito pelas suas opções religiosas, políticas, etc. Já não tenho muito para dar. Podia ficar em casa a gozar de uma certa comodidade a que teria direito... Mas não sou capaz”.

Uma vida longa, cheia, mas as maiores recordações deixava-as para a família, destacando-as ao Expresso, na altura:

“Recordo com muita emoção os momentos que vivi com os meus pais e com os meus irmãos. Adorava-os. Recordo também todos os momentos que vivi com o meu marido quando éramos mais novos, o nascimento dos meus filhos, o regresso dele do exílio em São Tomé, o 25 de Abril, quando eu e o meu marido estávamos na Alemanha. Foram momentos muito especiais e emocionantes”.


Interrogada pelo que gostava de ser recordada, Maria Barroso disse ao i: Como “uma cidadã modesta mas amante da liberdade, da solidariedade e do amor. A minha palavra preferida, sem qualquer dúvida…o amor”.
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