Em quatro anos, 540 mil crianças perderam o abono de família - TVI

Em quatro anos, 540 mil crianças perderam o abono de família

Escola (REUTERS)

Estado devia corrigir medidas com efeito negativo nas crianças, defende diretora do Comité Português para a Unicef, Madalena Marçal Grilo

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A diretora do Comité Português para a Unicef, Madalena Marçal Grilo, defendeu hoje que o Estado devia olhar para os impactos que as medidas de austeridade estão a ter nas crianças e corrigir o que está mal.

«Os governos têm decisões difíceis a tomar», «tem que haver cortes orçamentais e medidas de austeridade», mas antes de os aplicar o Estado tem de ter «em atenção os impactos que vão ter nos mais vulneráveis», disse Madalena Marçal Grilo aos jornalistas, no final da apresentação do relatório «As crianças e a crise em Portugal – Vozes de crianças, políticas públicas e indicadores sociais, 2013».

Deu como exemplo as 546.345 crianças que perderam o direito ao abono de família, entre 2009 e 2012, devido ao facto de o acesso a esta prestação social ser mais restrito.

«Hoje em dia apenas têm acesso a esta prestação social famílias muito pobres», lamentou, defendendo que «é preciso que o Estado olhe para as medidas e as corrija».

Madalena Marçal Grilo sublinhou, na apresentação do relatório, que «o verdadeiro impacto das medidas de consolidação orçamental e redução do défice na vida das crianças ainda está por medir».

Para a responsável, os desafios que a recuperação económica coloca ao Estado português dá-lhe «uma oportunidade única de mudar e de adotar uma visão transformadora com futuro, que ponha os direitos das crianças no centro das políticas de combate à crise».

«Uma recuperação da crise baseada no respeito pelos direitos humanos é a melhor estratégia para corrigir as desigualdades e erradicar a pobreza e promover a coesão social», defendeu.

O Comité Português para a Unicef realizou um estudo junto de 77 crianças de todos os meios sociais para perceber como veem e sentem a atual crise.

As crianças «percebem e têm consciência de que a crise está a afetar o seu dia-a-dia», disse a responsável, considerando «preocupante» a «ideia de negatividade que está a passar para as crianças, a falta de esperança e de perspetivas de futuro».

Para a coordenadora do estudo, Karin Wall, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o relatório «mostra que a vida das crianças foi profundamente afetada».

«Se tivéssemos entrevistado os pais destas crianças teríamos provavelmente encontrado adultos a falarem de crianças que estavam a ser protegidas dos efeitos da crise», disse a investigadora.

Mas depois de ouvidos os seus discursos, o estudo constatou que que as crianças «são, talvez, mais tocadas pela crise do que os adultos e que interpretam e pensam sobre a sua vida familiar à luz dos problemas que atravessam o país neste momento».

Revelam também uma «grande empatia e preocupação com o esforço e o sacrifício que os pais fazem para ultrapassar os problemas e para as proteger» e gostariam de saber as razões da crise.

O retrato do que as crianças estão a viver com a crise foi feito por Adriana Jasmat, uma jovem de 17 anos que frequenta o 12º ano numa escola de Lisboa e é monitora de um grupo de jovens.

Adriana contou que não sofreu muito com a crise porque a sua família «sempre esteve em crise».

«A minha mãe ensinou-nos a viver com o que temos. É claro que às vezes quero um computador novo ou roupa, mas sei que a minha mãe não me pode dar tudo ao mesmo tempo, mas tenho colegas que sentiram a crise com maior intensidade», disse Adriana.

Como exemplos, apontou o facto de os jovens perguntarem o preço das visitas de estudo, recorrerem mais aos bancos de livros e chegarem à escola cansados e molhados porque perderam o direito à ação social escolar e já não têm passe.

Mas Adriana disse que a crise também tem o seu lado positivo, apontando o facto de algumas pessoas terem conseguido tornar o seu hobby em fonte de rendimento.

Pobreza infantil não será resolvida sem combater pobreza da família

Já o presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz, Alfredo Bruto da Costa, alertou hoje que o problema da pobreza infantil nunca será resolvido se não forem combatidas as causas da pobreza da família.

O alerta de Bruto da Costa surgiu no final da apresentação do relatório do Comité Português para a Unicef «As crianças e a crise em Portugal – Vozes de crianças, políticas públicas e indicadores sociais, 2013», a que estava a assistir como convidado.

O documento faz uma análise aprofundada das políticas de resposta à crise e ao modo como estas estão a afetar o dia-a-dia dos agregados familiares com filhos, e dá a conhecer testemunhos, opiniões e estratégias para enfrentar a crise de crianças e adolescentes que vivem em Portugal.

«A pobreza é uma situação de privação por falta de recursos. Nós temos a descrição da privação, pouca análise da falta de recursos e do que ainda falta de recursos», sublinhou Bruto da Costa, comentando os dados do estudo.

O economista explicou que uma criança nunca é titular de recursos e, como tal, «cientificamente não há nada a que se chame pobreza infantil».

«O que há é privação infantil e situações de pobreza das famílias em que as crianças vivem e quem é titular dos recursos são os pais», sustentou.

Desta situação surge uma «consequência científica imediata»: «Por mais que façamos pelas crianças, se não olharmos para as causas da pobreza da família, nós nunca resolvemos o problema da pobreza infantil», frisou.

Bruto da Costa advertiu ainda que, se isso não for feito, corre-se um «grande risco», o risco de não se passar de «medidas assistenciais».

Este risco, «em certo sentido, perpassa tudo o que se tem feito em termos de pobreza em Portugal, nos últimos 50 anos», frisou.

«Nós temos tido o condão, nos últimos 50 anos, de reduzirmos palavras fortíssimas como "empoderamento", participação, dar a voz aos pobres (…) e de reduzirmos estes fatores de mudança social fortíssimos a questões totalmente inócuas. Damos a voz sem nada acontecer», lamentou.

O presidente da Comissão Nacional de Justiça e Paz colocou o desafio à Unicef de continuar este trabalho, encontrar os fatores explicativos para estas situações, «que estão muito bem caracterizadas e, a partir daí, ver que tipo de desdobramento ou complemento poderia ter na lista das recomendações que fazem».

«As recomendações podem ser extremamente válidas, mas um leitor qualquer também pode lê-las numa linha meramente assistencial», apesar de a intenção não ser essa.

No entanto, «permitem essa leitura e esse é um risco muito grande da sociedade em que vivemos, porque é um traço cultural da nossa sociedade reduzir a pobreza à assistência social».

Também a assistir à apresentação do relatório, a antiga ministra da Saúde e pediatra Ana Jorge realçou duas conclusões do documento: «Sem um sistema global integrado de recolha de dados e de uma política transversal a todas as áreas e a todos os direitos das crianças, não é possível chegar a elas e esse é um contributo muito importante para sairmos do assistencialismo para os direitos».

Nesse sentido, Ana Jorge defendeu uma “política para a infância” integradora de todos os setores da sociedade, desde as autarquias, à economia, às famílias, ao emprego, à saúde e à educação, porque sem isso não se consegue que as crianças tenham os seus direitos.

«Aquilo que se tem vindo a passar na área da educação é pôr-se em risco o futuro destas crianças», apontou como exemplo Ana Jorge.
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