Olhos da Lei: "A justiça tem de ser feita em nome do povo e é suposto ser transparente" - TVI

Olhos da Lei: "A justiça tem de ser feita em nome do povo e é suposto ser transparente"

  • AM
  • 27 fev 2020, 23:55

Programa de justiça da TVI24 analisou o caso que envolve o Vaz das Neves, o surto de coronavírus, e o arquivamento do processo que envolve Vale e Azevedo

Há exatamente uma semana a TVI denunciou as suspeitas de que Luís Vaz das Neves, ex-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, tenha favorecido Rui Rangel na distribuição de processos. Vaz das Neves foi constituído arguido no processo Lex, sob suspeita de corrupção e abuso de poder e, a juntar a esses factos, veio a público que o mesmo juiz fez uso do Salão Nobre daquele edifício para um julgamento privado, pelo qual recebeu 280 mil euros, indo assim contra a lei que impede os magistrados de receberem este tipo de pagamentos. Acresce ainda que Vaz das Neves foi indicado para arbitrar esse julgamento privado pelo atual presidente da Relação de Lisboa, Orlando Nascimento.

Em análise no programa Olhos da Lei, o editor de justiça da TVI24 considerou que este caso "passa uma imagem que é péssima para a justiça, em termos de opinião pública, de que os magistrados vivem numa casta especial".

"A justiça é suposto ser administrada e feita em em nome do povo e é suposto ser transparente, ao nível do que se passa com outros poderes públicos e, portanto, não é normal que a comunicação social tenha posto a nu uma situação como pusémos há uma semana em relação aquela questão - no mínimo, promíscua e no máximo, de natureza criminal", considera Henrique Machado.

Para o jornalista da TVI, o próprio Ministério Público considera que estão "reunidos indícios de práticas de origem criminosa".

"Não é normal que isto tenha sido trazido a publico por nós há uma semana e o Conselho Superior de Magistratura não tome qualquer posição pública por um lado e por outro que o presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, o desembargador Orlando Nascimento, continue a ser presidente do mesmo tribunal. No mínimo, o senhor já devia ter dado explicações sobre isto, mas tudo continua tal e qual estava. Noutras questões da vida pública, estas coisas têm consequências", reitera.

Já Sofia Matos, advogada, considera que "a utilização de um espaço em que esperamos que sejam usados para julgamentos públicos utilizados para um fim privado" não é ilegal, mas tem que ter finalidade pública.

"Se, por um lado não é ilegal, mas não nos podemos esquecer que efetivamente tudo o que é utilização de um espaço público deve ser feito com uma finalidade também ela pública e não foi isto que aconteceu. (...) Não parece bem porque todos nós sabemos que este tipo de arbitragens são pagas sem que o Estado receba uma comparticipação dos honorários que são pagos neste tipo de processos". 

 

Quanto ao pagamento que Vaz das Neves terá recebido pelo uso do Salão Nobre do Tribunal da Relação de Lisboa, a advogada considera que podem ter ocorrido os crimes de peculato e de burla ao Estado.

"Podemos falar de um crime de peculato porque há a apropriação de um espaço público para um fim privado e depois temos uma remuneração. No fundo, o que há da parte de Vaz das Neves, podemos ter outro tipo de crime: não só há de facto aqui uma burla ao Estado - porque recebe uma remuneração que não lhe é devida e está a praticar atos quando não poderia praticar e portanto há um enriquecimento ilegítimo que certamente dentro deste processo ou de outro qualquer terá que fazer o reembolso ao Estado se se verificar realmente não suspendeu as funções", afirmou.

 

Por sua vez, o advogado Paulo Saragoça da Mata, considera que "a cessão de um espaço público para a realização de qualquer tipo de atividade que não é pública, não se pode fazer sem a procedimentos legais para o efeito".

"Não me parece que qualquer coisa pudesse acontecer sem o conhecimento do presidente do próprio tribunal, também. Mal seria que, dentro de um tribunal, um presidente não tivesse qualquer palavra a dizer sobre as coisas. Terá sido indicado. O que mais me suscita alguma perplexidade. (...) Não me choca que uma sala do tribunal seja usada para um fim de um funcionamento de um tribunal arbitral. A mim não me choca. Tem é de ser feito de acordo com regras e tem de haver uma remuneração pelo espaço. Puderá estar aqui em causa um peculato de uso, ou seja, a utilização de uma coisa fora das regras devidas. (o pagamento) É outro assunto", afirma, acrescentando que "o tempo da justiça não é o tempo da comunicação social" e que "qualquer juiz deve ter o direito de reserva e não deve falar".

Coronavírus: "Mude-se a constituição e mude-se rapidamente"

O novo coronavírus também esteve em análise no programa "Olhos da Lei", onde a questão do internamento compulsivo por motivos de saúde pública em Portugal esteve em discussão. 

Para Henrique Machado, é urgente mudar a constituição, até porque "medidas urgentes são tomadas nestas alturas de maior emergência".

"A nossa liberdade termina onde começa a dos outros e o direito a que os outros têm de não ficarem também eles doentes. Aliás, nós temos aqui um choque entre aquilo que é a nossa lei principal, a Constituição, e o Código Penal. A Constituição diz que nós não podemos obrigar ninguém a quarentena contra a sua vontade, independentemente da pessoa estar doente, mas depois, se essa pessoa, de forma consciente, acabar por contagiar alguém, depois aí já é reprimida. A Constituição não permite que se atue do ponto de vista preventivo, mas depois se alguém comete o crime de forma consciente então aí já atua e alguém já é punido. Por uma questão de bom senso e regras de experiência de gente normal, a justiça quando pode ter um efeito preventivo acho que deve atuar de forma preventiva e não à espera depois de vir reprimir. A meu ver, mude-se a constituição e mude-se rapidamente".

Para o editor da TVI24, quando se fala de medidas urgentes, "a lei tem de ser clara e não pode estar sujeita a duplas interpretações e a recursos e a irmos ao direito internacional", como acontece em Portugal.

De acordo com o advogado Paulo Saragoça da Mata, apesar da Constituição portuguesa não permitir o internamento compulsivo por motivos de saúde pública, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos consagra esse direito.

"O artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem prevê expressamente como uma das situações de restrição à liberdade de circulação e de movimentos, a situação de doença contagiosa. (...) Faz sentido mudar a constituição acrescentando-lhe uma alínea. É do mais manifesto bom senso. É imperioso (que se mude a Constituição)", afirmou.

No entanto, a advogada Sofia Matos lembrou que "há um problema" chamado "interpretação" de quem faz aplicar a lei.

"Temos a convenção que nos permite em situações destas internar compulsivamente, mas há um problema. É que a interpretação que é dada por quem faz aplicar esta lei, no fundo, quem decreta ou não se determinado grupo de pessoas que tiveram sujeitas a contágio devem ficar em quarentena ou não, entende que é a violação de um direito constitucional que é o direito à liberdade das pessoas. E se o entendimento de quem faz aplicar a lei é contrário aquilo que nós entendemos que deve sobrepor-se que é o direito da convenção, então nós passamos a ter um problema em Portugal que é: se tivermos alguém que esteve em contágio e que pode ser potencialmente uma pessoa que pode propagar e pode transformar aquilo que pode transformar-se numa pandemia, aquilo que acontece é que aquelas pessoas não podem ser cortadas da sua liberdade", explicou, concordando que "é urgente e emergente" que se mude a Constituição.

Vale e Azevedo: "Londres não é Pyongyang, mas às vezes parece"

O caso da prescrição do processo em que Vale e Azevedo é acusado do desvio de cerca de cinco milhões de euros obtidos com a transferência de jogadores foi outro dos temas em análise, esta noite, na TVI24. O antigo presidente do Benfica vive em Londres, em liberdade, e assim deve continuar uma vez que as autoridades dizem ainda não o ter conseguido notificar.

"Londres não é Pyongyang mas às vezes parece, do ponto de vista da cooperação judiciária as coisas não são fáceis", considerou o editor de justiça da TVI24.

Para Henrique Machado, Vale e Azevedo "fica para a história" com "a incompetência do Ministério Público em dois processos: o das transferências dos jogadores e dos direitos da transmissão televisiva"

"Isto só não é tão grave do ponto de vista da imagem que a justiça passa em relação a Vale e Azevedo porque efetivamente há uma sensação de impunidade tão grande na criminalidade economica em relação a varias personagens económicas que nós conhecemos da vida pública que Vale e Azevedo pelo menos as pessoas pensam "este parece que paga por uma série de gente" e "pelo menos este já cumpriu alguma pena". Isto também só é assim porque Vale e Azevedo, efetivamente, tem um longo currículo de atividade criminal e também fica para a história a incompetência do Ministério Público em dois processos: o das transferências dos jogadores e dos direitos da transmissão televisiva".

Por sua vez, Paulo Saragoça da Mata considerou que "o que fizeram a Vale e Azevedo é absolutamente inaceitável" pois "criaram imensos processos, para cada vez que acabava um começava outro".

"Conheço o início destes casos. A prescrição é um instituto fundamental para a segurança jurídica e todas as alterações ao instituto da prescrição dos últimos 15 anos foram contra os arguidos criando um sistema de prescrição quase que impossível de atingir. Ou seja, a prescrição hoje em dia já não funciona como funcionava à data da prática dos factos pelo doutor Vale e Azevedo. Portanto, hoje em dia não estariam prescritos os factos porque a mais pequenina coisa interrompe a prescrição. Pior, os tribunais tem um entendimento de que as interropções interrompem-se umas às outras o que levará a prazos de prescrição intermináveis. (...) Se tivessem feito tudo no momento certo ele tinha cumprido uma pena de 18 anos, se fizessemos um cumulo, mas de seguida. Agora, a lógica foi mesmo depois de estares livre daquele agora toma lá por mais um".

Já Sofia Matos explicou que "a lei é assim" e que "tem que haver prazos de prescrição por questões até de segurança jurídica".

"No caso em concreto, estamos a falar de uma prescrição que para o crime de peculato em causa poderia ir até ao máximo, a prescrição dos 15 anos. Decorreram mais de 20 anos, não há nada a fazer, a não ser o Benfica colocar isto nas suas contas como uma perda", concluiu.

 

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