Ministério Público não fez nada para evitar que esta mulher morresse - TVI

Ministério Público não fez nada para evitar que esta mulher morresse

Em 37 dias, Ana (nome fictício) teve de explicar três vezes as agressões a que era sujeita por Bruno (nome também fictício) sem que lhe fosse atribuído o estatuto de vítima. Acabou morta à paulada pelo marido

Ana (A) e Bruno (B) (nomes fictícios) conheceram-se em novembro de 2014. Apaixonaram-se e casaram-se em janeiro de 2015. Mas, rapidamente, o que era um conto de fadas, tornou-se num pesadelo. A 23 de setembro de 2015, Ana obrigou Bruno a sair de casa depois de várias discussões com agressões físicas presenciadas pelos vizinhos.

”No exterior e nas imediações da residência A e B envolveram-se numa discussão e contenda física, na qual A desferiu um empurrão a B e este, pelo menos, um murro na cara de A. Em consequência dessa agressão, A ficou com escoriações e hematomas na face. Seguidamente, encontrando-se no exterior, B dirigiu-se a A afirmando «Tu não vais ter sossego, não te vou sair da porta, vou-te matar filha da ****»".

37 dias depois, Bruno voltou a casa com um objetivo que concretizou: matou Ana, como havia ameaçado.

Ao contrário dos nomes, que são fictícios, a história é verdadeira e foi revelada pelo relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Contexto de Violência Doméstica (EARHVD) que acusa o Ministério Público (MP) de não ter feito nada para salvar esta mulher.

Isto porque, depois de ter obrigado Bruno a sair de casa, Ana dirigiu-se, a 29 de setembro, seis dias depois da rutura, ao MP onde apresentou queixa oral contra Bruno. Mas, no auto, apenas ficou registado "agressões e queixas". Mais nada.

Nove dias depois, a 8 de outubro, uma magistrada do Ministério Público de Valongo pede que a vítima seja notificada para "esclarecer nos autos o teor da sua queixa-crime" no prazo de dez dias. Ana respondeu ao MP, por escrito: “No dia 23 de setembro de 2015, fui vítima de uma agressão, com socos, empurrões, por parte do meu marido, ficando ferida no olho esquerdo, boca e peito lado esquerdo, sofrendo ainda ameaças por parte do mesmo, tais como, «arrebento-te a cabeça, se fizeres queixa de mim»”.

Casa armadilhada

Durante todo esse tempo, Bruno vigiava e controlava os movimentos de Ana. De tal maneira, que Ana se viu obrigada a armadilhar a casa para tentar afugentar o agressor.

“Tal era o medo de A, que teve a necessidade de munir a sua habitação de armadilhas, como, por exemplo, ligar o fio de corrente elétrica aos estores, colocar trancas de madeira nas janelas, por forma a evitar que B entrasse à socapa em sua casa", pode ler-se no relatório.

Menos de 20 dias depois de ter sido notificada pelo MP, a procuradora decide que é preciso voltar a questionar a vítima para avaliar se estavam “perante um crime de violência doméstica” susceptível de justificar o accionamento do estatuto de vítima.

A vítima é então inquirida às 14:00 do dia 4 de novembro. Sai do Ministério Público sem que lhe seja atribuído o estatuto de vítima. 

"Não foi atribuído a A o estatuto de vítima, não foi feita nenhuma avaliação de risco, nem equacionada a aplicação das respectivas medidas de proteção da vítima", lê-se no relatório.

Ana regressa a casa, estaciona o carro e no momento em que se dirige à porta da cozinha, Bruno, que a esperava escondido no quintal, bate-lhe com um pau na cabeça repetidas vezes, até que ela cai inanimada no chão. Arrasta o corpo para dentro de casa, tranca a porta e sai. 

A 5 de novembro, a procuradora do MP de Valongo emite, tarde demais, um despacho no qual pede que Bruno seja constituído "como arguido", sujeito a interrogatório e sujeito "a termo de Identidade e Residência".

Bruno seria notificado a comparecer no Ministério Público, a 2 de dezembro, para interrogatório.

Denúncia foi tratada "sem qualquer urgência"

Para a Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Contexto de Violência Doméstica, "o Ministério Público nunca tratou a denúncia apresentada por A como um efetivo caso de violência doméstica, ou seja, nunca deu cumprimento às exigências que a lei impõe, e impunha já a 22 de outubro de 2015, no tratamento das denúncias e na investigação do crime".

O relatório vai ainda mais longe, dizendo que "a magistrada do Ministério Público tratou a denúncia sem qualquer urgência e sem atender à urgência dos factos, seguindo o inquérito a sua própria marcha burocrática, distante dos apelos de intervenção da vítima".

"B mata A no preciso dia em que A presta declarações nos serviços do Ministério Público de Valongo, tendo decorrido 37 dias desde a data em que tinha apresentado denúncia, sem que tivesse havido por parte do Ministério Público qualquer intervenção no sentido de tomar uma decisão quanto a medidas de proteção a aplicar à vítima ou quanto ao requerimento de medidas de coação a aplicar ao agressor".

Segundo o relatório, dois vizinhos e conhecidos de Bruno revelaram que, "numa conversa no café, este teria confessado que tinha morto A", mas estes não deram "qualquer relevância a essa conversa, por entenderem que este estaria a mentir".

O corpo de Ana, de 55 anos, viria a ser encontrado três dias depois, "a 7 de novembro de 2015, pelas 19:40, no interior da residência", com "lesões crânio-meningo-encefálicas que foram a causa direta e adequada da sua morte".

Bruno, de 42 anos, foi detido três dias depois e condenado a 16 anos e meio de prisão

Continue a ler esta notícia