Professora foi assassinada após 14 queixas. Só uma foi considerada crime de violência doméstica, já depois da sua morte - TVI

Professora foi assassinada após 14 queixas. Só uma foi considerada crime de violência doméstica, já depois da sua morte

Mulher

Mulher, de 61 anos, foi degolada a 8 de janeiro de 2016, após dez anos em que foi vítima de violência doméstica, quase sempre na presença do neto menor. O caso consta do último relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, que aponta várias falhas no acompanhamento das vítimas

Uma mulher de 61 anos, professora, foi brutalmente assassinada pelo companheiro a 8 de janeiro de 2016, após 14 queixas de agressões. Mas só uma foi considerada crime de violência doméstica, resultando em condenação, três meses após a sua morte. O caso consta do último relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD), a que a TVI teve acesso, e que aponta várias falhas no acompanhamento das vítimas, onde se inclui uma criança, que testemunhou os maus-tratos à avó durante dez anos.

Foi o neto, então com 13 anos, que, naquela tarde, tentou salvar a avó, fugindo de casa pela janela do seu quarto para pedir ajuda num café, sem saber que seria um pedido já em vão, como foram tantos outros nos últimos dez anos.

Ajudem-me. Ele diz que vai matar a minha avó”, disse a criança, que conseguiu a atenção de um vizinho.

Estava em casa, como quase sempre, quando o companheiro começou a agredir a avó. A última vez que a viu, ela estava “de joelhos”, presa pelo cabelo e com o rosto marcado por “diversos socos na boca”. A última vez que a ouviu ela gritava por ajuda.

Quando o vizinho chegou à casa, ouvindo os gritos da mulher, entrou pelo quintal e perguntou o que ali se passava.

O agressor apareceu à porta da entrada da cozinha, trazendo a vítima “agarrada pelo pescoço com o braço esquerdo, empunhando na mão direita uma faca de cozinha”. A faca encostada ao pescoço da mulher fez o vizinho recuar e esperar, na rua, a chegada da PSP.

Quando a polícia chegou, a vítima de violência doméstica, a mulher, a mãe, a avó, a vizinha, a professora estava já morta, degolada, após “secção completa da veia jugular interna direita”, o fim de “múltiplas lesões traumáticas, de natureza cortante e corto-perfurante, dispersas na face, pescoço, tórax e membros superiores”.

A espiral de violência teve o seu epílogo após uma tomada de posição da vítima. Horas antes de chegar a casa foi vista pelo companheiro, no decorrer de uma das muitas perseguições que lhe fazia, a sair de uma esquadra da PSP, acompanhada por um advogado.

Questionado, mais tarde, pela PSP, respondeu que, “pensando que tinha feito queixa contra ele novamente, decidiu acabar com a vida dela”

Começámos pelo fim, porque foi pelo fim que este caso grave de violência doméstica começou, depois de dez anos de pedidos de ajuda, que resultaram numa única condenação pelo crime de violência doméstica.

Parece mentira, mas só a 1 de abril de 2016, cerca de três meses após o homicídio, o homem, de 40 anos, agressor, toxicodependente, alcoólico, frequentemente desempregado, pai de dois filhos que não acompanhou, foi condenado a uma pena única de dois anos e cinco meses de prisão, “pela prática, em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica qualificada, um crime de ameaça agravada, um crime de ofensa à integridade física e um crime de dano qualificado”.

Até então, a Justiça atribuiu ao homicida quase sempre crimes de ofensa à integridade física simples ou danos, que precisam de queixa formal para chegarem a lado algum, ao contrário do crime de violência doméstica que não obriga a vítima a apresentar queixa.

Todos os inquéritos iniciados por agressões foram arquivados sem quaisquer consequências para o agressor, exceto dois: um, em 2009, por violência doméstica, que foi suspenso provisoriamente e arquivado em 2010 após cumprimento de obrigações (afastamento da residência e de proibição de contactos), e outro de 2015, também por violência doméstica, no qual o agressor foi condenado em 2016, já depois do homicídio. 

O relatório fala em “condescendência para com o comportamento” do agressor, aponta “falta de proatividade na investigação criminal” e conclui que “da inconsequência da ação judiciária”, resultou que a proteção da vítima “não foi conseguida” ao mesmo tempo que o agressor “foi fortalecendo um sentimento de impunidade”.

Sobre a criança que testemunhou toda esta violência, e apesar de a avó "reiteradamente" ter manifestado as suas preocupações quanto à segurança do neto, "não existem também, na informação recolhida, referências a qualquer apoio prestado", segundo o relatório elaborado pela EARHVD.

"Esta criança presenciou agressões de que a sua mãe e particularmente a sua avó foram vítimas, incluindo as que acabaram no homicídio, viu objetos e equipamentos que utilizava serem destruídos [pelo agressor] e foi alvo de ameaças graves por parte deste. Não só não foram avaliadas as consequências psicológicas destes comportamentos, de que foi vítima, como não lhes foi dada a devida relevância criminal", pode ler-se no documento.

Face ao caso tomado como exemplo, a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, que reúne representantes do Ministério da Justiça, do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, do organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, do Ministério da Saúde e da Polícia de Segurança Pública, recomenda, essencialmente, ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal que "é fundamental que se desenvolva a capacidade de implementação do 'Manual de Atuação Funcional a adotar pelos OPC [Órgãos de Polícia Criminal] nas 72 horas subsequentes à apresentação de denúncia por maus-tratos cometidos em contexto de violência doméstica'" de modo a proteger, desde logo, as vítimas. 

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