A culpa não foi tua, Roberto: foi de «Master» William McCrum - TVI

A culpa não foi tua, Roberto: foi de «Master» William McCrum

Roberto Baggio, 1994

Há 125 anos nascia o penálti, fruto da imaginação de um irlandês milionário e guarda-redes

Relacionados

Há um nome que une o balão de Roberto Baggio, em 1994, às mãos nuas de Ricardo, dez anos mais tarde. É o mesmo nome que liga as invenções de Coppens, Panenka ou Cruijff à precisão de sniper exibida por Pelé, Eusébio e outros especialistas dos onze metros. Um nome, enfim, responsável pelos milhões de gritos anónimos, que a cada fim de semana pedem ou protestam penáltis em todos os estádios do mundo. Esse nome é o de William McCrum, irlandês de famílias abastadas, guarda-redes medíocre e entusiasta, boémio e apostador. Foi ele o inventor de uma das instituições sociais mais sólidas dos últimos 125 anos: a lei XIV do futebol, que os íntimos aprenderam a tratar por penálti.

O aspeto actual do William McCrum Park, em Milford

Filho de Robert McCrum, um milionário da indústria têxtil, William nasceu em 1865, em Milford, arredores da pequena cidade de Armagh, na parte ocidental do que é hoje a Irlanda do Norte. A povoação era pouco mais do que um conjunto de casas em redor da mansão familiar, no cimo da colina. Tinha sido mandada construir por McCrum pai, para alojar as centenas de operários que trabalhavam na sua fábrica de tecidos.

William teve uma educação privilegiada, com o pai apostado em formá-lo como sucessor nos negócios da família. Pequeno problema: nada atraído pela gestão de stocks e pelos contactos com os fornecedores, McCrum habituou-se às experiências proporcionadas pelos estudos em Dublin e pelas frequentes viagens de lazer. Tornou-se um entusiasta do teatro, da música, dos casinos e, acima de tudo, de desportos. Praticava xadrez, râguebi e críquete, mas era especialmente entusiasta do futebol, cujas regras tinham sido fixadas apenas dois anos antes do seu nascimento.

Conhecido na vila de Milford como «Master William», McCrum filho foi fundador e patrocinador de diversos clubes da região, entre eles o Milford Everton FC, que participou no primeiro campeonato da Irlanda, realizado em 1890/91. Nessa época de estreia, William era o guarda-redes da defesa mais batida do país: o Milford terminou a Liga com 14 derrotas em 14 jogos, e um saldo de 10-62 em golos.

Milford FC: McCrum é o segundo na fila central

Os desaires desportivos não desencorajaram McCrum, educado no espírito corintiano da época, segundo o qual participar era o mais importante. O que o incomodava, isso sim, era o que considerava uma falha nas regras do seu desporto favorito: quanto mais perto da baliza eram os lances, mais duras eram as entradas de quem defendia. E as faltas violentas eram punidas com um livre indireto, que raramente resultava em golo: no fundo, o crime compensava.

Foi para resolver esse problema que, em junho de 1890, McCrum fez chegar ao seu amigo Jack Reid, secretário-geral da federação irlandesa e avançado no Cliftonville, uma proposta de alteração às regras. Rezava assim:

Se algum jogador derrubar ou segurar um adversário, ou jogar deliberadamente com a mão a menos de 12 jardas da sua linha de golo, o árbitro atribuirá à outra equipa um tiro de penalidade, a ser executado a 12 jardas da linha de golo e nas seguintes condições: todos os jogadores, à exceção do executante da falta e do guarda-redes – que não poderá avançar mais de seis jardas – têm de permanecer a um mínimo de seis jardas, atrás da bola. Esta entrará em jogo assim que pontapeada, e um golo pode ser marcado diretamente a partir do pontapé.

Reid deu seguimento à proposta do amigo, e a federação irlandesa apresentou a proposta no encontro anual do International Board. Mas, como todas as inovações drásticas, a ideia de McCrum foi ridicularizada por vários participantes na reunião.

O argumento principal era o de que, tratando-se o futebol de um desporto de cavalheiros, todas as faltas e cargas duras resultariam do empenho, e não da intenção deliberada de prejudicar o adversário. Assim sendo, não fazia sentido punir de forma tão severa o que era apenas expressão de entusiasmo. Outra crítica formulada na reunião acusava McCrum de ceder à sua veia teatral, reclamando para a função de guarda-redes um protagonismo dramático, contrário ao espírito original do desporto. Por isso, a proposta foi rejeitada, com a promessa de ser reavaliada dali por um ano.

Notts County e o crime perfeito

McCrum não precisou de esperar tanto tempo para ver a sua ideia ganhar força. O pretexto decisivo, segundo todos os estudiosos do desporto, foi um jogo dos quartos de final da Taça de Inglaterra, entre o Notts County e o Stoke City, a 14 de fevereiro de 1891.

Notts County: Hendry é o quinto a partir da esquerda, em cima

A perder por 1-0 a um minuto do fim, o Stoke viu um defesa do Notts County, de nome Jack Hendry, evitar um golo com a mão e não conseguiu converter o livre indireto, dado que todos os jogadores adversários foram para a linha de golo. A «imoralidade» da vitória do Notts County – que nesse ano chegaria à final – foi sublinhada pelo árbitro no relatório de jogo, e o documento chegou à reunião do International Board, em junho desse ano. Após várias horas de discussão, a «proposta irlandesa», como era então chamada, foi novamente posta a votação e aprovada, passando a integrar as leis do jogo na temporada seguinte, 1891/92 – a mesma época em que a utilização de redes atrás das balizas passou a ser norma.

McCrum não tirou grande partido da ideia pioneira: continuou a sua vida de privilegiado, voltando à baliza de quando em vez, apostando, envolvendo-se em clubes e associações culturais e, principalmente, desbaratando a fortuna amealhada pelo pai. Morreu em 1932, solitário e sem dinheiro, votado ao esquecimento pelo mundo do futebol. Só a insistência de um historiador local, Joe McManus, recuperou a sua história, fazendo com que chegasse ao conhecimento da FIFA. Depois de uma investigação aos arquivos do International Board, a oficialização chegou em 2001, sob a forma de uma pedra tumular e um busto em homenagem a McCrum erguidos no centro do Parque de Milford.

A homenagem a McCrum

O relvado onde McCrum, por volta de 1890, entre um golo sofrido e outro, parou a meditar nas injustiças do futebol tem hoje em dia o seu nome. E a povoação apresenta-se, nos roteiros turísticos, como o berço mundial do penálti. Mais de cem anos depois, num documentário que protagonizou sobre a história do castigo máximo, Gary Lineker apontou para a lápide e comentou, em alusão ao péssimo registo dos ingleses na conversão de penáltis: «Este homem tem muitas contas a prestar». Não será Roberto Baggio a desmentir-nos se concluirmos que o século XX teria sido bem diferente caso Master William tivesse mais jeito para os negócios.

O busto de homenagem ao inventor do penálti

Soldados desconhecidos é uma rubrica dedicada a figuras pouco conhecidas da história do futebol, com percursos de vida invulgares.

Continue a ler esta notícia

Relacionados