Cava catalão, lágrimas marroquinas, 'tiros' sérvios: o Farense em festa - TVI

Cava catalão, lágrimas marroquinas, 'tiros' sérvios: o Farense em festa

Farense

18 anos à espera do momento mais especial do clube algarvio no século XXI. Maisfutebol apanha Paco Fortes, Hassan Nader, Milonja Djukic e Idalécio no vulcão da boa loucura

Relacionados

É uma casa catalã, com certeza. A mesa está posta, há berros e loucura. Uma boa loucura. Paco Fortes abre a garrafa de cava catalão, solta «urra, urra!» em louvor ao seu Farense e atende o Maisfutebol em Barcelona.

«18 anos à espera, camarada. Tenho aqui a família toda reunida, isto é como o casamento ou o aniversário de um amigo. O nosso Farense está de volta, c……!»

Casablanca já teve Bogart e Bergman, um Play it again, Sam, mas nada se compara às lágrimas de Hassan Nader. São lágrimas de amor pelo Farense, o seu Farense. E aqui o pronome possessivo faz toda a diferença.

«Eh pá, já pus hoje o hino do Sporting Clube Farense a tocar cá em casa. Já imaginou? Uma rua marroquina inteira a ouvir-me cantar pelo Farense? Isto está a mexer muito comigo. Só me apetece apanhar um avião, aterrar em Faro e ajoelhar-me na relva do São Luís.»

Em Londres há sangue algarvio. Idalécio, trave hiperbólica da defesa algarvia na temporada europeia de 95/96, festeja a subida do Farense em confinamento social. O hotel onde trabalha está encerrado e aguarda melhores dias. Beba-se um bom vinho, pois então.

«Foram anos duros para o clube. Má gestão, problemas judiciais, cofres vazios. Estar novamente na I Liga é um tributo às pessoas que viveram e sofreram pelo Farense. Nunca me esquecerei que fiz a minha estreia no primeiro escalão e na Taça UEFA com aquela camisola branca.»

O mundo ao contrário. Telefonamos para Faro e temos um histórico sérvio do outro lado da linha. Milonja Djukic esquece por umas horas o encerramento temporário do café e da empresa de fornecimento de hotéis que possui na capital algarvia. Djukic era senhor de um remate único, verdadeiros 'tiros' sérvios.

«O clube tem de recuperar a cultura dos anos 90. Jogadores algarvios misturados com estrangeiros de grande qualidade. Tínhamos grupos espetaculares. Você acredita que à quinta-feira jantávamos sempre juntos? Ninguém podia faltar. Esse espírito fez o grande Farense dos anos 90, muito por culpa também do Paco Fortes, um espetáculo à parte.»

Uma equipa histórica do Farense: época 93/94

O efeito Paco Fortes: «Obrigava-nos a massacrar os adversários»

Paco Fortes. Os relatos começam e acabam invariavelmente no génio catalão. Génio, sim senhor. Paco joga quatro anos no Barcelona de Cruyff, Neeskens e Krankl antes de chegar a Faro com 30 anos, em 1984.

Muito do crescimento farense, até ao apogeu nos anos 90 e na qualificação em 1995 para a Taça UEFA, passa pelo cérebro agitado de Fortes. O Farense tem 24 presenças no escalão máximo, 12 delas consecutivas – de 1990 a 2002.

«O meu coração é do Barcelona e do Farense. Nunca me esquecerei do verão de 84. Eu estava no Valladolid e tinha dois convites de clubes da primeira divisão espanhola. Certo dia, um amigo falou-me na possibilidade de jogar em Faro. Não conhecia nada do clube. Fomos de carro até ao Algarve e mal cheguei… amigo, percebi logo que ia ficar muitos anos.»

Assim foi. Paco, avançado diabólico e treinador determinante na afirmação algarvia. Hassan, Idalécio e Djukic dizem todos a mesma coisa: «Paco era a alma e o coração da equipa».

VÍDEO: o jogo em São Luís contra o Lyon (1995/1996)

«Fala-se da fortaleza do São Luís e bem», diz Hassan, melhor marcador do campeonato na época 94/95. Um troféu que o levou para o Benfica. «As bancadas em cima do relvado, o entusiasmo do povo, o relvado mais pequeno. Sim, tudo verdade, mas a raça e os gritos do Paco Fortes obrigavam-nos a pressionar, a massacrar os adversários.»

Djukic, outro nome incontornável nesse Farense dos anos 90, completa a ideia. «Fomos obrigados a ser competitivos, pressionantes, a ir para cima do adversário. Fosse o FC Porto, o Benfica ou outro qualquer, o Paco fazia a equipa crescer para eles.»

Hassan fez 97 golos pelo Farense, Djukic marcou 31, Paco Fortes anotou 13. 143 golos sem ser necessário mais do que três nomes.

 

Equipa atual festeja um golo contra o Aves na Taça de Portugal

«’Detesto jogar em Faro, só levo pancada’, disse-me o João V. Pinto»

Hassan Nader, 53 anos. Jogador do Farense de 1992 a 1995 e de 1997 a 2004. 242 jogos oficiais de leão ao peito.

«A descida em 2002 foi um golpe duríssimo. Lembro-me de ir à sala de imprensa e de ter um ataque de choro. Fomos grandes nos anos 90 e aceitar a despromoção foi como aceitar a partida de um amigo próximo.»

Hassan ainda ficou mais dois anos. Viu o clube a afastar-se dos adeptos, a iniciar um processo de insolvência, a descredibilizar-se.

«Quando cheguei ao Benfica, o João Vieira Pinto virou-se para mim e disse uma coisa que não mais esquecerei: ‘Detesto jogar em Faro. Mal recebo a bola, estou logo a levar pancada’. Eu ri-me e virei-me para ele. ‘Claro, és o melhor jogador e o Paco Fortes mandava-nos fazer isso’. No ano anterior, veja lá, ganhámos 4-1 ao Benfica em Faro. E eu marquei, claro.»

A emoção toma conta de Hassan. O marroquino começa a desfilar nomes atrás de nomes, figuras que edificaram um Farense poderoso. Equipa de primeira divisão. Ponto final.

«O Zé Carlos e o Peter Rufai na baliza. O Djukic, o Pitico, o Miguel Serôdio, o Portela, o Stefanovic, o Hugo, o Paixão, o Jorge Soares, o Punisic, tivemos jogadores incríveis. Mas não era só isso. O espírito era único e havia dirigentes competentes. Ah, e o grande Fernando Belo, o nosso massagista.»

Mas o que torna um grupo especial? Hassan dá um exemplo. «Ok, eu vou falar nisto: na época em que voltei a Faro chegámos a ter quatro meses de salários em atraso. Sabe o que eu e os mais bem pagos dissemos ao presidente? Paguem o que puderem aos que ganham menos para eles se aguentarem. Nós temos mais dinheiro e preferimos assim.»

E os golos mais marcantes de Hassan no Farense? «Dois ao Estrela da Amadora no fim da época 94/95, com os adeptos a entrarem em campo e a carregarem-me em ombros. Um ao Benfica em 1998 numa vitória por 1-0 e outro ao Boavista também muito perto do fim. 1-0 para o Farense.»

Uma carreira, uma vida farense.

«Vocês vão ver, daqui a um ano só me apanham na Eurosport»

Se Paco Fortes e Hassan Nader têm em conjunto quase 30 anos de Sporting Clube Farense, Idalécio é mais comedido no registo. Um ano apenas, mas um ano marcante.

«Saltei do Louletano para a primeira divisão e fiz logo dois jogos contra o Lyon na Taça UEFA. Eles tinham o Florian Maurice e o Ludovic Giuly. Perdemos 1-0 em casa e em França. Foi pena, porque o clube vendeu quase a equipa toda e nesse ano tinha menos qualidade.»

Idalécio recorda um ano de «muitas reuniões e problemas financeiros» e de um jogador especial: Christian.

«Ele vinha do Estoril e do Estrela, onde era suplente, tinha muitos problemas físicos. Mesmo no Farense ficava quase sempre no banco, mas tinha moral. Tantas vezes o ouvi dizer: ‘Vocês vão ver, daqui a um ano só me podem ver na Eurosport’. E nós ríamo-nos. ‘Oh Cristian, tu nem aqui jogas, pá’. E não é que o gajo voltou ao Brasil, explodiu no Internacional e ainda jogou três anos no PSG? Até na seleção do Brasil [11 jogos] o vi jogar.»

Milonja Djukic tem outras memórias. «Conheci o Algarve em 85, quando joguei contra o Portimonense pelo Partizan. Disse logo que queria viver ali. Quando o meu amigo Miroslav Curcic saiu do Farense para jogar no Belenenses, em 1991, indicou o meu nome. Quero agradecer-lhe isso publicamente, até como homenagem. Infelizmente, o Curcic faleceu há dois anos.»

Radicado em Faro e com dois filhos desportistas - «um é basquetebolista profissional e o outro joga futebol numa equipa do distrital» -, Djukic segue atentamente o novo Farense. E olha para a frente com cautela, num dia de festa controlada. 

«Vou ver sempre os jogos e o Farense vai ter de investir e trazer muitos jogadores novos. O nível da II Liga é muito inferior e o São Luís já não ganha jogos quase só por si.»

Barcelona, Casablanca, Londres, Faro. Quatro pontos cardeais no êxtase do Sporting Clube Farense neste regresso já oficial à I Liga. 18 anos depois. Parabéns aos leões algarvios.

Continue a ler esta notícia

Relacionados