«No Tibete vi um miúdo com a camisola do FC Porto e pensei: ‘Estou a sonhar’» - TVI

«No Tibete vi um miúdo com a camisola do FC Porto e pensei: ‘Estou a sonhar’»

Germano Silva

«Um café com…» Germano Silva, jornalista, cronista e autor de dezenas de livros sobre a história da cidade do Porto

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Umas portas acima do antigo Campo da Constituição, que foi casa do FC Porto entre 1913 e 1952, encontramos Germano Silva.

Está sentado numa mesa do café Bugatti a ler o seu Jornal de Notícias.

Entrou no JN em 1956, como colaborador, foi estagiário e acabou por ser repórter e chefe de redação, até se reformar com 40 anos de casa, mantendo a sua coluna de crónicas onde revela alguns dos segredos mais bem guardados da cidade.

Escreveu dezenas de livros sobre a Invicta, recebeu o título de doutor Honoris Causa pela Universidade do Porto, em 2015, e em 2017 foi agraciado com a Ordem de Mérito, grau de Comendador, pelo Presidente da República, tendo também sido galardoado com as medalhas de mérito, grau ouro, pelas Câmaras Municipais do Porto e de Penafiel, onde nasceu.

Germano, acabado de fazer 90 anos, é um notável contador de histórias. Sobre o Porto, claro, mas também sobre futebol.

Da sua memória prodigiosa recorda os tempos em que criou um clube na ilha do Cruzinho e de quando ia à bola sem conseguir ver o jogo, mas para sentir o alarido do público que lhe tapava a vista.

Recupera o misterioso desaparecimento de Andrazik e uma das suas viagens ao Tibete (foram três, entre as 15 que fez à China) para recordar um episódio insólito de um dragão às portas de Lhasa.

Jornalista, cronista, escritor, historiador, Germano foi também guarda-redes do Boavista, mas é adepto do FC Porto com o mesmo entusiasmo da juventude.

Há dias, o sócio três mil e pouco, teve até o presidente dos dragões a cantar-lhe os parabéns aos microfones da rádio.

MAISFUTEBOL: Qual é a sua primeira memória de um jogo de futebol?

GERMANO SILVA: Foi um jogo do Boavista contra o Arrábida, um clube de bairro que havia em Gaia, para o campeonato de promoção, aí pelo ano de 1938 ou 1939. Eu vivia na ilha do Cruzinho, entre a Rua do Campo Alegre e a do Bom Sucesso [no Porto]. Tinha para aí uns sete anos e fui ao antigo campo Eng.º Mascarenhas Júnior, onde é hoje o Bessa. Era um campo com uma bancada de madeira muito tosca, tinha um túnel de acesso ao campo por baixo da bancada, onde havia uma placa de mármore com o retrato de um jogador, o Óscar, que havia sido guarda-redes do Boavista. O campo era pelado e lembro-me de que os centrais punham um lenço na cabeça para que a bola com as areias não lhes deixasse a testa toda marcada.

O que o fez, então, ser do FC Porto?

Lá no bairro a maioria era portista. Punham-se bandeiras do clube na janela quando havia uma vitória importante. E houve outros pormenores. Lembro-me de ter um espelho pequeno que tinha nas costas um jogador do FC Porto. Depois, vim muitas vezes aqui ao Campo da Constituição [ao lado do café Bugatti]. Ficava à entrada dos torniquetes a pedir: «Meu senhor, leve-me consigo.» Lá entrava e não via nada. Só sentia aquele alarido do jogo.

Qual era o seu ídolo de infância?

Sou do tempo do Soares dos Reis, que sucedeu ao Miguel Siska na baliza do FC Porto. Era ele o meu ídolo.

O próprio Germano chegou a jogar como guarda-redes.

Formámos um clube de futebol na ilha do Cruzinho. Tínhamos uma bola de pano e só arranjámos uma de couro através de um concurso dos rebuçados Vitória. Tivemos de juntar cinco cadernetas de autocolantes com as imagens de uns animais – o bacalhau, o cabrito e a cobaia eram os mais raros. Nós andávamos numa escola primária em frente ao Palácio de Cristal, descíamos pela Rua de Entrequintas e íamos desafiar os miúdos da Escola da Boa Viagem, em Massarelos, onde andavam os rapazes que depois fizeram o Conjunto António Mafra. Íamos jogar para o «campo das caveiras», como lhe chamávamos, que era nas traseiras do cemitério de Agramonte.

É verdade que depois chegou a jogar nos juniores do Boavista?

O senhor Avelino «Fala Barato», que era o treinador dos juniores do Boavista e vivia na ilha do Cruzinho, viu-nos a jogar à bola na rua e chamou-me para lá ir treinar. Fiz três jogos como júnior do Boavista, mas deixei porque aos 18 anos já trabalhava numa fábrica de panos em Lordelo e não podia conjugar o trabalho com os treinos.

Perdeu-se um bom guarda-redes?

Se calhar… Uma vez defendi um penálti. Foi o meu grande momento. [risos]

Que profissão queria ter?

O meu sonho era trabalhar para um banco ou uma companhia de seguros. Eram profissões com um estatuto social muito bom. Eu tinha tirado o curso comercial à noite, mas não tinha quem me desse um empurrão. Até que, já depois da tropa, acabei por através de um amigo arranjar emprego nos serviços administrativos do Hospital de Santo António. Foi aí que conheci alguns jornalistas, que iam lá à procura de notícias.

E foi aí que começou a sua carreira como jornalista?

Ganhei confiança com um repórter do Jornal de Notícias, que era mais ou menos da minha idade, e dizia-lhe «vocês andam só atrás de pernas partidas e há ali casos bem mais interessantes». Como por exemplo o de um homem que era pobre e andava a pedir, mas que um dia se sentiu mal e os bombeiros deram com ele em casa deitado num colchão cheio de notas. Um dia, por causa de uma dessas notícias que lhe dei, ele ganhou um prémio e quis dividi-lo comigo. Não aceitei. Em vez disso, disse-lhe: «Arranja-me antes um cartão para ir aos jogos de futebol.» Julgava eu que era assim.

E então?

No dia seguinte, ele veio com a resposta: «Falei com o meu colega da secção de desporto e o cartão é personalizado. Mas ele disse que, se quisesses colaborar, passavas a ter um e ias ver os jogos.» O primeiro jogo que fui fazer como repórter foi um Leça-Académico, da III Divisão, em 1954/55. Depois, passei a acompanhar assembleias-gerais, jogos importantes, passei de estagiário a chefe de redação. Aposentei-me em 1996, mas mantive a minha coluna.

Dos muitos livros e crónicas que escreveu sobre a cidade do Porto há alguma história sobre futebol que ainda lhe cause algum espanto?

Muitas. Uma delas foi a do desaparecimento do Béla Andrazik, um guarda-redes húngaro do FC Porto, no tempo da II Guerra Mundial. Estava hospedado no Hotel Aliança, entre a Rua de Sá da Bandeira e a Rua Sampaio Bruno, desapareceu misteriosamente e nunca mais se soube nada dele. Diziam que era um espião [dos Aliados] – relatos da época contam que Andrazik ter-se-á juntado à resistência em França e que, no campo de batalha, guardava consigo junto ao peito a fotografia da sua estreia pelo FC Porto.

Germano Silva à conversa com o Maisfutebol

Antes do domínio do FC Porto, como era a rivalidade entre os clubes da cidade?

O FC Porto já era maior do que os outros, até porque os fundadores tinham poder económico. Tal como o Boavista, aliás. O Boavista é fundado por engenheiros e técnicos ingleses de fábricas na zona do Foco e do Campo Alegre. O FC Porto tem uma raiz mais ligada a comerciantes de vinho do Porto, a alguma aristocracia também. Já o Salgueiros não. Foi uma fusão de dois clubes dos trabalhadores do comércio e da fábrica Salgueiros. Como não tinham dinheiro para comprar camisolas novas tingiam as que tinham de vermelho. Era um clube do povo.

Ainda assim, foi o FC Porto a tornar-se no clube mais popular e transversal em termos sociais.

Sim, pela capacidade desportiva, pela participação em provas internacionais tornou-se num clube conhecido em todo o mundo. Por exemplo, nos anos 80, numa das viagens que fiz ao Tibete, encontrei um rapaz com a camisola do FC Porto.

Como foi esse encontro?

Vinha já cansado de uma viagem que durou horas pelo meio das montanhas quando à entrada da capital, Lhasa, parámos numa bomba de gasolina… De repente, vejo um miúdo a lavar já não me lembro o quê numa bacia, com a camisola do FC Porto vestida e pensei: «Já estou a sonhar…» [risos]

Tentou falar com ele?

Saí, aproximei-me do rapaz, apontei-lhe para a camisola e ele fugiu. Disse ao intérprete: «Este miúdo tem a camisola do clube da minha terra.» E ele prometeu-me no dia seguinte levar-me até ele. Assim foi. Tirei uma fotografia com ele com a camisola do FC Porto. Acho que foi algum portista que passou por ali e lha ofereceu.

Aos 90 anos de idade, continua a acompanhar o futebol como na sua juventude?

Sempre com o mesmo entusiasmo. Tenho o meu lugar cativo no Dragão. Sou aquele adepto que sofre, que vive sempre naquela ansiedade.

Há uns dias teve o presidente do FC Porto a cantar-lhe os parabéns numa emissão especial da TSF pelos seus 90 anos. Como é que isso aconteceu?

Conheço o Pinto da Costa há muitos anos. Desde o tempo em que ele vivia com a mãe, em Cedofeita. A primeira vez que falámos foi num alfarrabista que havia ao fundo da rua. Estávamos a escolher livros e ele disse-me: «Andamos à procura da mesma coisa…» Depois, fomo-nos cruzando várias vezes quando eu era jornalista no JN. Agora, isso do aniversário surgiu de um convite do Fernando Alves, que veio fazer a emissão ao Porto e, mal eu cheguei ao estúdio, disse-me: «Vais ter uma surpresa.» Respondi-lhe: «Achas que há alguma coisa que surpreenda um jornalista? É o Pinto da Costa que vem aí…» «Como é que tu sabes?» É que eu tinha ido na véspera ao Porto Canal e contaram-me. Estraguei-lhes a surpresa. [risos]

Era amigo de José Maria Pedroto. Há quem o compare a Sérgio Conceição. Faz sentido?

São diferentes. Até o jogo hoje é muito diferente, é quase computorizado. O Pedroto era um tipo afável, muito culto. Uma vez o escritor Augusto Abelaira veio fazer a crónica de um FC Porto-Benfica para «O Jornal» e eu intermediei isso porque trabalhava lá. O Pedroto fez questão de que na véspera do jogo o Abelaira viesse jantar com a equipa ao Grande Hotel da Batalha. Nessa tarde, apanhei-o numa feira do livro que havia na Rotunda da Boavista a comprar livros do Abelaira.

Essa comparação tem sobretudo que ver com o facto de ambos encarnarem o espírito do clube. Há treinadores que não têm essa ligação com os adeptos, não concorda?

Nesse aspeto, sim. Há treinadores e jogadores que estão ali a cumprir uma missão e quando acabar vão para outro lado. Não acredito quando jogadores, sobretudo estrangeiros, fazem um golo e beijam o emblema. Fazem aquilo para cativar a simpatia dos adeptos, mas se aparecer o Liverpool a dizer «anda cá, que eu dou-te mais não sei quanto» eles vão. Hoje não há amor à camisola.

E noutros tempos, como era?

Lembro-me quando o Machado, que era um grande avançado do Salgueiros, foi contratado pelo Boavista. Isso deu muito que falar nos anos 40. No primeiro jogo que fez pelo Boavista, ele vestiu a camisola do Salgueiros. No balneário disseram-lhe: «Pá, agora não é essa!» E ele respondeu: «A da minha alma é esta. A outra que vou vestir é para o público ver.» A alma salgueirista vem daí. Já não há jogadores que vistam a camisola do seu clube junto ao peito.

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