Vasco-Flamengo: o tamanco português, as ‘camisas negras’ e a ironia de Jesus - TVI

Vasco-Flamengo: o tamanco português, as ‘camisas negras’ e a ironia de Jesus

Flamengo-Vasco da Gama

«A História de Um Jogo» leva-nos até ao Brasil e ao clássico carioca

A História de Um Jogo é uma rubrica semanal do Maisfutebol. Escolhemos um dos encontros do fim de semana e partimos em busca de histórias e heróis de campeonatos passados. Todas as quinta-feiras.

O Brasil teria sempre Zico. Mas não teria Romário, que jogou por Vasco da Gama e Flamengo, e que no estádio que neste fim de semana acolhe o clássico carioca apontou o golo mil da carreira. Não teria, não. Como não teria Pelé, Ronaldo, Ronaldão e Ronaldinho.

A história de Vasco e Flamengo não se resume aos duelos de Zico e Roberto Dinamite, ídolos da torcida. Ela tem, em si própria, episódios gigantescos, e o duelo de sábado é o pretexto perfeito para contar como esta rivalidade centenária mudou a história do Brasil.

O tamanco de dois metros! Porque o Vasco é português

O Vasco é do norte do Rio de Janeiro. O Flamengo, o Fluminense e o Botafogo do sul da Cidade Maravilhosa. O América é ‘nortenho’, mas como os três últimos era um clube elitista, da Grande Tijuca. Os campeões do Rio eram estes quatro. Ricos e brancos em campo, ricos e brancos nas bancadas das Laranjeiras, estádio do Flu, com as suas boas roupas e bons modos. O Vasco era português.

Mário Filho, jornalista que deu nome ao Maracanã, historiou que no início dos anos 20 do século passado o adepto do Basco era alvo de gozo. Pelo sotaque, pela herança, porque era menor. Quando o Vasco da Gama foi derrotado pelo Flamengo em 1923, adeptos rubro-negros, tricolores e alvinegros de Fla, Flu e Botafogo saíram das Laranjeiras em parada, celebrando.

Como está escrito nos livros de história desportiva do Brasil, era a vitória de filhos de boas famílias sobre negros e analfabetos. Jogadores do Vasco, que os comerciantes portugueses diziam ser empregados do seu negócio para combater um amadorismo obrigatório num football – como sucedera em Inglaterra – que de amador já não tinha nada.

O desfile após o 3-2 do Flamengo sobre o Vasco terminou com a exibição de um gigantesco tamanco – caracteristicamente português – na sede cruzmaltina em tom de troça. Porém, esse jogo tem outra estória. Bem maior que o tamanco…

Os camisas negras e a «Resposta Histórica»

Quando Vasco da Gama e Flamengo pisarem São Januário no fim de semana, não será mais um jogo de ricos contra pobres, de brancos contra negros. Será o jogo mais recente de uma rivalidade futebolística histórica que mudou o Brasil.

Voltemos àquele jogo de 1923. O Vasco tinha acabado de chegar à primeira divisão carioca. América, Flamengo, Botafogo e Fluminense olharam altivos. De cima não percecionaram que uma equipa de negros, crioulos, mulatos os podia vencer.

Não era só a cor do equipamento vascaíno, era também a cor da pele que era negra. Os «camisas negras» do Vasco da Gama tinham vencido Botafogo, América e Fluminense. Não tinham perdido qualquer jogo e o Flamengo era, muito provavelmente, o único obstáculo até final do campeonato à invencibilidade de uma equipa recrutada nos subúrbios do Rio de Janeiro e ‘empregada’ nas lojas portuguesas.

Os «camisas negras». FOTO: Vasco da Gama

O Flamengo ganhou o jogo por 3-2. O Vasco ganhou o campeonato. Apenas com essa derrota e, por isso, os outros, os ricos, os elitistas, os meninos de bem, revoltaram-se. E fizeram o que a elite estava habituada a fazer. Proibiram os pobres.

O campeonato carioca era gerido pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres. O ‘jogo do tamanco’ foi a 8 de julho de 1923 e menos de um ano depois, em março de 1924, Botafogo, Flamengo, América e Fluminense criaram uma nova liga. Chamaram-lhe Associação Metropolitana de Esportes Athleticos. Nos regulamentos, estava escrito que não podiam existir jogadores sem emprego e analfabetos. Deviam estar a pensar no Vasco da Gama quando redigiram regras. Estavam a pensar no Vasco da Gama quando redigiriam regras…

Quando o clube cruzmaltino tentou a inscrição, obteve resposta clara: o Vasco da Gama podia participar se 12 jogadores específicos não fossem inscritos. Aqueles 12 eram todos pobres e negros, eram, claro está, a equipa conhecida como «Camisas Negras» que vencera dois anos antes.

O presidente vascaíno escreveu uma carta à associação, uma missiva que é conhecida como «A Resposta Histórica.» Nascido em Portugal, José Augusto Prestes foi o líder vascaíno que deu um murro no preconceito com palavras simples.

«Quanto à condição de eliminarmos doze dos nossos jogadores das nossas equipes, resolveu por unanimidade a Directoria do C.R. Vasco da Gama não a dever acceitar, por não se conformar com o processo porque foi feita a investigação das posições sociaes desses nossos consocios, investigação levada a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa.

Estamos certos que V. Exa. será o primeiro a reconhecer que seria um acto pouco digno da nossa parte, sacrificar ao desejo de fazer parte da A.M.E.A., alguns dos que luctaram para que tivessemos entre outras victorias, a do Campeonato de Foot-Ball da Cidade do Rio de Janeiro de 1923.

São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias.

Nestes termos, sentimos ter que comunicar a V. Exa. que desistimos de fazer parte da A.M.E.A..»

O Vasco recusou entrada em 1924, mas voltou em 1925 até porque a equipa atraía espectadores aos recintos e isso era algo que a AMEA não queria desperdiçar.

Ainda assim, aquela carta foi um marco, uma tomada de posição que mudou mentalidades, mudou o futebol e o Brasil até. O preconceito, hoje, persiste. É um facto. Mas o indivíduo preconceituoso é como o troféu de uma vitória por 3-2 que de nada serviu. É um tamanco e nada mais.

Já a rivalidade Vasco-Flamengo que se joga outra vez é muito mais do que isso. É cor, paixão e ironia.

Romário, um negro que fez mais de mil golos, jogou em ambos os lados. E se em São Januário o artilheiro-mor é Roberto Dinamite, no Maracanã, é o «Pelé Branco». Porque há um negro, né?, o maior jogador da história de um Brasil que teria sempre um Zico, mas que se arriscou a não ter nem Ronaldo, Ronaldinho ou Ronaldão.

Porque quando a mentalidade é a de um tamanco, nem o filho de um emigrante de Tondela, nem um treinador português da Amadora, poderiam ter feito o que Zico e Jorge Jesus fizeram. E essa é, também, uma das ironias desta rivalidade entre Vasco da Gama e Flamengo, que começou lá bem atrás, quando «camisas negras» entraram em campo e, apesar de derrotadas nesse dia de 8 de julho de 1923, ganharam o futuro e deram-nos o presente.

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